Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Ultraje no Afeganistão

Exclusivo para assinantes
Por Redação
3 min de leitura

A primeira vítima das guerras é a verdade, já se sabe. Mas a extinção do sentido elementar de decência humana vem logo atrás. Guerras não são nem galantes nem cavalheirescas. São brutais e bárbaras. Sempre foram e sempre serão. Fica apenas a tênue esperança de que o testemunho documentado de atos de brutalidade e barbárie leve à punição dos perpetradores e ao enxovalhamento moral que as cadeias de comando a que respondem, militares e civis, tenham feito por merecer. Afinal, apesar de transgredidas, quando não reduzidas a objetos de escárnio - como nos Estados Unidos de Bush -, continuam em vigor as convenções internacionais sobre o que podem ou não podem fazer os soldados e sobre os limites das ordens recebidas de seus superiores, para diminuir a incidência de crimes de guerra.É verdade que, no caso na ordem do dia - o vídeo que mostra quatro fuzileiros navais americanos urinando nos cadáveres de três afegãos, possivelmente militantes do Taleban -, não há motivo para supor que os oficiais do 3.º Batalhão do 2.º Regimento de fuzileiros navais tenham assistido impassíveis à cena repulsiva ou mesmo sugerido a profanação dos corpos. Não se sabe quem gravou as imagens que foram parar no YouTube, o destino hoje em dia natural de uma infinidade de tomadas de todos os gêneros concebíveis. O episódio ocorreu em algum momento entre março e setembro de 2011, quando a unidade de mil homens servia no Afeganistão, de onde o presidente Barack Obama pretende desengajar no correr deste ano eleitoral em seu país cerca de um terço dos 100 mil soldados americanos ali acantonados.Tampouco os escalões superiores podem ser responsabilizados pela execução, "por esporte", de três civis afegãos, entre janeiro e maio de 2010. Dez meses depois, por sinal, o cabeça do grupo de soldados assassinos foi condenado a 24 anos de prisão. Mas oficiais e praças são acusados pelo governo de Cabul da tortura e morte de afegãos detidos na base de Bagram, no interior do país. O WikiLeaks já tinha revelado em 2010 a existência de um destacamento formado para eliminar os insurgentes que conseguissem capturar. E há o registro mais ignominioso de todos - as fotos de militares americanos, entre eles a soldada Lynndie England, que virou celebridade, torturando iraquianos na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá. As imagens se tornaram o símbolo da ocupação do Iraque. Onze torturadores foram condenados a penas brandas. Nenhum oficial foi punido, embora soubessem das atrocidades.Abu Ghraib, Bagram e todos os lugares não identificados onde ultrajes foram ou continuam sendo cometidos em nome da "guerra ao terror" são filiais do último círculo do inferno instalado a milhares de milhas do Oriente - a base naval americana de Guantánamo, em Cuba. A sua transformação em um dos mais infames presídios do mundo completa este mês 10 anos. Relatos dos horrores que se praticam no "centro de detenção" por onde já passaram 800 pessoas não cessam de circular. Leia-se o artigo Meu pesadelo em Guantánamo, do bósnio de origem argelina Lakhdar Boumediene, publicado no New York Times e transcrito dia 12 neste jornal. O autor até que se guardou de detalhar o que sofreu em sete anos e meio de encarceramento até ser inocentado de uma acusação absurda. (Ele vive hoje na França.)Fechar Guantánamo em um ano a contar da posse foi a grande promessa descumprida do presidente Obama. O seu governo não conseguiu decidir o que fazer com os 171 presos remanescentes. Desses, apenas 4 cumprem pena por terrorismo. Trinta e dois aguardam julgamento. Noventa têm condições de ser transferidos - não se sabe quando nem para onde. E 46, considerados perigosos demais, ficarão mofando na base. É como Obama dizia: os Estados Unidos criaram em Guantánamo mais terroristas do que levaram para lá. E quando há uma chance de começar a conversar com o Taleban, para o que os EUA dependem do presidente afegão Hamid Karzai, vem o que ele chamou um "ato simplesmente desumano". Washington deve cumprir logo, por motivos políticos, o dever moral de punir os envolvidos com todo o rigor dos códigos militares.