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Um dedo em riste solto no ar

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Por Luiz Weis
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Ainda bem que os políticos não são puro cálculo. Como os simples mortais que os investem de poderes, muitas vezes se deixam tomar por rancores, ressentimentos e revanchismos, passando recibos na contramão dos seus melhores interesses. Nessas horas, o antegozo do doce sabor da desforra, que os anima a vazar para a imprensa os vexames alheios de que têm conhecimento, os faz esquecer de que estão sob o mesmo telhado de vidro dos desafetos e que esses retribuirão na mesma moeda. De outro modo, o público ficaria privado da ração periódica de escândalos que mantém alimentada a sua indignação com o que considera a irremediável falência moral do estabelecimento político e a impressão geral de que política e probidade são uma contradição em termos. Pode parecer que os indigitados cavam a vala comum com a troca de denúncias que não costumam assumir e cujos autores os denunciados só muito raramente entregam (como fez o senador Tião Viana, ao acusar o rival José Sarney como fonte da notícia de que ele emprestou o celular pago pelo erário para a filha em viagem ao exterior). Mas, se assim fosse, o ritmo de renovação do elenco ou pelo menos dos principais protagonistas seria incomparavelmente maior e o índice de indecência entre os políticos não se manteria basicamente inalterado, entra ano, sai ano, entra vexame, sai vexame. A Justiça Eleitoral destitui governadores por seus delitos de campanha e determina que sejam substituídos pelos adversários dos quais se suspeita com fortes razões de que tenham feito o mesmo que aqueles que os derrotaram. E nada mais eloquente, a propósito, do que a volta à ribalta, com as costumeiras pirotecnias, do único presidente cassado da história nacional - agora no papel de pai dos fiscais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e, como todos os Sarneys, Renans e Geddels da vida, lulista desde criancinha. O fato é que, até onde a memória alcança, os ciclos de revelações escabrosas, anúncios de providências reparadoras de festim, acomodações costuradas nos bastidores e resignação na plateia tendem a se esgotar por si sós, como se trouxessem a obsolescência programada. A história se repete, por sinal como farsa, jamais como tragédia, porque os políticos não têm incentivos para ser diferentes do que são. Há, é verdade, casos notáveis de políticos afinal fracassados por terem se tornado sinônimos de corrupção. Mas se eles se distinguem é precisamente por serem raros. Em geral, os que zelam pelo dinheiro alheio com a obsessão de um avarento com os próprios dobrões não se beneficiam disso nas urnas na proporção do seu desvelo. E os que torram o dinheiro alheio com um abandono de ganhador da Mega-Sena não têm por que perder o sono pensando no risco de pagar pela esbórnia. A impunidade é uma doença nacional, mas ela não se propaga apenas por ser contagiosa. Faz parte de uma síndrome não menos afamada - a cultura que perpassa a sociedade e que só da boca para fora separa o que é de cada um do que é de todos. A sua tradução verbal está no dito "não é meu mesmo". A sua expressão corporal é o dar de ombros. E nada mais fácil do que pegar uma gente execrada em toda parte para expiar o pecado dos muitos que, a seu modo, também se apropriam com naturalidade da coisa pública. Daí a inconsistência do protesto moralista contra os malfeitos da politicalha. Assim como o denuncismo está para a denúncia, o moralismo está para a moralidade, sendo o primeiro a contrafação da segunda. O moralismo é um dedo em riste solto no ar, exibindo a inexistência de um corpo de virtudes cívicas republicanas amplamente compartilhadas, cuja coluna vertebral seria o sentido de responsabilidade pessoal pelo patrimônio, espaço e interesse comuns. A coesão social em torno desse princípio é a argamassa da moralidade pública. Sem isso, instituições e exortações de defesa da ética - e elas existem - não conseguem furar a casca grossa de um cinismo que está longe de ser exclusivo dos políticos. À parte quaisquer outros fatores, a coesão estará tão mais (ou menos) presente numa sociedade quanto maiores (ou menores) forem as diferenças entre os seus membros - não apenas de renda, mas de acesso aos bens materiais e imateriais com que se constrói a cidadania. Nas sociedades historicamente desiguais, como a brasileira, não espanta que prevaleça a tirada do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), de quem se podia dizer tudo, menos que tivesse ilusões sobre a natureza humana. "Erst kommt das Fressen, dann kommt die Moral" (Primeiro vem o rango, depois vem a moral), ensinava ele. O que não quer dizer necessariamente - e no Brasil definitivamente não diz - que os mais bem nutridos sejam socialmente mais éticos do que os outros, isto é, que tenham arraigado na sua mentalidade e na percepção dos acontecimentos nacionais um compromisso com a proteção do coletivo. Daí a falta de lastro do seu repúdio à Geni a que chamam "classe política". Mas quer dizer que ninguém deveria estranhar que a esmagadora maioria dos 11 milhões de beneficiários do Bolsa-Família, mais os tantos cuja vida melhorou graças à política de aumentos reais do salário mínimo, mais os tantos cujo rango ficou mais farto graças à inflação controlada não se horrorizem com as companhias em que anda o presidente Lula. Da perspectiva deles, os políticos são o que são e a corrupção política é um dado. O que conta é se o dirigente que se alia à corrupa toma, ou deixa de tomar, decisões que os favoreçam. Nos níveis inferiores da pirâmide brasileira, Lula não perdeu prestígio por causa do mensalão, muito menos pela esqualidez moral de boa parte dos seus aliados, do PMDB para baixo. Se passou a perder pontos nas pesquisas, a explicação, como é evidente, está na crise que ele dizia ser uma marolinha. O Senado de 181 diretores é por certo um desaforo. Mas o moralismo nunca impediu os brasileiros de levar desaforos para casa. Luiz Weis é jornalista