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Um disparate assustador

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Por A. P. Quartim de Moraes
3 min de leitura

Implementando uma "nova política para devolução de livros consignados", uma grande editora brasileira instruiu os seus clientes - distribuidores e livrarias - a "descartar", na verdade, destruir livros não vendidos, devolvendo apenas as capas e a página da ficha catalográfica! Nenhuma instrução específica sobre como promover o "descarte" das obras encalhadas: fogueira, alto-forno, lata do lixo, reciclagem. Nada. Apenas: livrem-se deles!Inacreditável, mas verdadeiro. Tão verdadeiro quanto absurdo. E tão absurdo que a própria editora, sob a pressão da enxurrada de críticas que imediatamente recebeu, cancelou a disparatada instrução. Menos mal. Diante da evidência pública do enorme despropósito, alguém teve o juízo de dar o dito por não dito e colocar a tranca mesmo depois da porta arrombada.Não, não se tratou de um "cochilo" de algum executivo afoito e desavisado! O que certamente houve é que alguém, afoita e desavisadamente, propôs interna corporis a genial ideia como fórmula miraculosa para salvar um troco nas operações de regularização das consignações. Afinal, os fretes andam pela hora da morte! E todo o board embarcou na canoa furada. Ah, se arrependimento matasse!Surpreendente? Absolutamente, não! É assim que funciona a cabeça da maior parte dos executivos que hoje comandam a indústria do livro, os responsáveis pelas decisões estratégicas não apenas na gestão empresarial das grandes casas publicadoras, mas também sobre o que vai ou não vai ser publicado. E é fácil compreender esse comportamento quando se verifica que a maior parte desses executivos foi recrutada no grande varejo ou nas instituições financeiras. Profissionais, é claro, que entendem de vendas, de grana, craques no big business. Mas que são incapazes de distinguir a sutil diferença, vamos dizer - só para irritar os caras -, ontológica, entre um produto para a gôndola de supermercado e outro para a estante de livraria. Entre um tubo de dentifrício e um livro.Vou-me repetir: houve tempo - bom tempo! - em que o mercado editorial brasileiro (aliás, nem era chamado de "mercado") era comandado por uma plêiade de editores idealistas, visionários, homens como Monteiro Lobato, Caio Prado, Ênio Silveira, Jorge Zahar, José Olímpio, Fernando Gasparian, Waldir Martins Fontes e muitos outros, um bando de maravilhosos voluntaristas que são responsáveis por tudo o que temos de melhor no acervo bibliográfico brasileiro dos últimos 60 ou 70 anos. O tempo passou, a globalização impôs ao mundo dos negócios, do qual o editorial faz parte, modelos de gestão cada vez mais rigorosos do ponto de vista da eficiência, da produtividade e, consequentemente, da rentabilidade. E é claro que o voluntarismo dos grandes editores do século passado não cabe mais no mundo de hoje.A moderna indústria livreira necessita, portanto, de marqueteiros criativos, administradores e financistas competentes, todos a serviço de atividades-meio indispensáveis à lucratividade do negócio do livro. Mas, definitivamente, ela não precisa de fundamentalistas do mercado que acham que jogar livros no lixo é genial.A morte poupou o nosso maior bibliófilo, José Mindlin, do desgosto de conviver com uma barbaridade como essa perpetrada por uma grande editora comercial brasileira. E em homenagem a esse grande homem, e aos que ainda acreditam na importância e na magia do livro, e que por isso o tratam com respeito, permito-me relembrar aqui um episódio revelador, entre outras coisas, do bom humor e da sabedoria do dr. Mindlin.Pouco antes do Natal de 2006, tive o privilégio de participar da bancada de entrevistadores do dr. Mindlin no programa Roda Viva, da TV Cultura. Depois da morte dele o programa foi reprisado pelo menos duas vezes, suscitando novos e entusiasmados comentários de amigos a respeito do maravilhoso desempenho do entrevistado, absolutamente lúcido e surpreendentemente vivaz para um homem já então com mais de 90 anos. E resultou mais uma vez unânime, como um dos pontos altos da entrevista, a resposta dada à pergunta sobre a opinião que ele tinha a respeito do escritor Paulo Coelho. Reproduzo-a de memória: "Não vou dar a resposta clássica, "não li e não gostei". Li O Alquimista. E não gostei. Penso que o Paulo Coelho está para a literatura assim como o bispo Edir Macedo está para a religião." Se não fosse pela condição de maior bibliófilo brasileiro, de empresário audacioso e bem-sucedido e de homem público que teve a coragem, nos anos 70, de desafiar os arreganhos repressivos da ditadura militar no episódio do assassínio do jornalista Vladimir Herzog, o dr. Mindlin mereceria um lugar no panteão dos prestadores de grandes serviços à humanidade só por aquela magistral analogia, que enunciou com a serenidade que é virtude dos verdadeiros sábios.É claro que a comparação entre o campeão da autoajuda e o líder da Igreja Universal foi uma boutade, o desenho de uma caricatura. No que se refere ao escritor - sobre o outro não me animo a afirmar nada -, estou entre os que entendem que a obra de Paulo Coelho não tem grande valor literário. Não se pode, contudo, negar - da mesma forma que o dr. Mindlin não negava - a importância de um escritor universalmente consagrado como grande campeão de vendas. Afinal, dirão os mais espertos do que eu, isso é o que interessa.Mas, para muito além da tirada de bom humor, a analogia que o dr. Mindlin teve a coragem de expor diante das câmeras da televisão é perfeita e escancara uma realidade assustadora, que o recente episódio do "descarte" de livros põe mais uma vez em evidência.JORNALISTA, É EDITOR ASSOCIADO DA GLOBAL EDITORA. E-MAIL: APQUARTIM@DUALTEC.COM.BR