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Opinião|Um elogio do centro que não existe

Atualização:

Parte I: das reclamações sobre o centro que existe.

A palavra centro é um pejorativo na cena política brasileira. Ser de centro é não ter nenhuma identidade. Ser de centro pega mal. Há razões históricas para tanto desprestígio. Puxemos pela memória cansada.

Durante a Constituinte, no final dos anos 1980, quem dava as cartas era um bloco de parlamentares que atendia pela alcunha de “centrão” (o Brasil e sua mania de aumentativos). O centrão era um amebão animado por certas (ou erradas) mucosas do PMDB, que não recusava certas (ou erradas) secreções do PFL. O centrão era o dono do meio de campo daquele jogo (o Brasil e suas metáforas futebolísticas). Para se apossar do controle das maiorias da então chamada “Assembléia Nacional Constituinte”, o centrão dispensava as ideologias. Não tinha programa, plataforma ou ideário – e nisso residia sua força acachapante. Desapegado de parâmetros programáticos, agenciava permutas as mais diversas, levando ao pé da letra a fantasia de que na política se estabelece um “mercado de ideias”.

Um de seus ideólogos (ou um de seus mais desinibidos “desideológos”), o deputado constituinte Roberto Cardoso Alves gostava de repetir um bordão caridoso atribuído a São Francisco de Assis: “É dando que se recebe”. O centrão era cristão. Num país em que, já naquele tempo, a direita não gostava de se apresentar com o seu próprio cartão de visitas, o centrão foi o albergue luxuoso dos que enterravam a própria identidade numa caixa de arquivo morto e se dedicavam a mercadejar coalizões sem coerência e sem inocência. Tudo isso, claro, em nome do povo brasileiro.

Com essa folha-corrida, é evidente, a palavra centro não haveria de ter uma reputação positiva. Não obstante, o centro está vivo e está aí. Mas onde? Ora, na política brasileira atual, o centro está em toda parte. O PMDB, legatário maior do memorável centrão, é seu retrato mais fiel (e, portanto, desfocado). No PMDB a gente encontra de tudo (menos Eduardo Cunha, claro, que este se esconde por trás de si mesmo, de tal forma que quem o procura até consegue vê-lo, mas nunca o encontra, como numa sala de espelhos), de tudo mesmo, e esse tudo, é incrível, está nos lugares mais diferentes e, mais incrível ainda, todos esses lugares ficam no centro. O PMDB é demonstração cabal de que as leis da física quântica valem para a política. E mais: o PMDB é tão de centro que parou de dizer que é de centro, posto que ser de centro pega mal.

Quanto ao PT, que também migrou para o centro, convertido aos milagres de São Francisco de Assis, deixou no passado sua velha identidade, da qual só se lembra quando o chefe se irrita com a imprensa e resolve mandar recados mal-educados para o ministro da Fazenda. Só o que resta de esquerda ao PT é sua birra infantil (ou será senil) com Joaquim Levy. Só. No mais, ele é de centro – mas isso ele não conta pra ninguém.

E o centro continua. Não se esgota no PMDB ou no PT. Imagine. Ele é espaçoso, expansível, fagocitante. Dentro dele mora também o PSDB, que há meses procura se decidir sobre o que fazer com relação a Eduardo Cunha e ainda não chegou a uma conclusão crível. O centro que aí está às vezes pode ser um buraco negro em cujo vórtice o agente hameletiano (mas um hamletiano paródico, muito mais cômico do que o Hamlet original) sucumbe sobre si mesmo. Nesse centro que tudo devora, os desorientados desaparecem misteriosamente – fenômeno que explica o completo sumiço da oposição.

O centro que aí está não tem caráter político. Não tem nenhum caráter at all. Aliás, o centro que aí está se define exatamente por isso, pelo que não tem, pela negativa. Sua identidade é a ojeriza a qualquer identidade. Não sendo coisa nenhuma, esse centro quer tomar conta de todas as coisas: de um cargo de quinto escalão em, vejamos, Furnas? Na Eletrobrás? No Banco do Brasil? Até a Presidência da República (ou mesmo a Vice-Presidência, que anda mais valorizada).

Esse centro é pior do que a saúva. Pior, muito pior do que a corrupção. Vai acabar com o Brasil.

Parte II: da defesa do centro que não há.

Então, a saída está nos extremos? Claro que não. Quanto a isso, registre-se que o centro que aí está não supera os extremos – apenas procura ocultá-los, sob o manto do oportunismo. O que supera os extremos (em vez de acomodá-los em amaciamentos lucrativos) é a construção de uma política que não seja refém de cartilhas doutrinárias (de esquerda ou de direita) e vença com realismo e transparência, dentro de uma ética pública radical, os impasses nacionais. Essa política só pode ser de centro, pois rejeita tanto o vazio programático (das identidades ocultadas pela esperteza) quanto o extremismo (a intolerância a toda dissidência). E esse centro, que ainda não existe, só pode ser o oposto do que aí está.

Se você se lembrou daquela conversa de “terceira via”, naquele tempo em que Tony Blair se declarou um “radical de centro” (1997, 1998), lembrou certo. Naquele discurso de 20 anos atrás havia a pretensão de conciliar, em políticas públicas que combinassem soluções formuladas por pensadores de esquerda (como as fórmulas solidárias de distribuição de renda) e soluções liberais (como o fortalecimento do mercado ou a cultura da competitividade). Era uma pretensão justa e racional. Tinha sua legitimidade. Hoje, porém, ela é insuficiente.

Hoje, o Brasil precisa de um centro que constitua um polo. Parece paradoxal, mas é apenas lógico. O centro que nos faz falta deve trazer conteúdo programático e identidade política. Não se trata mais de uma equidistância entre extremistas, mas de um vetor afirmativo, capaz de vencer os extremistas. Não se trata mais dessa meleca em que as identidades ideológicas se mascaram e se misturam, mas da superação de preconceitos sectários.

O caminho para isso está livre. Só falta coragem.

EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA E PROFESSOR DA ECA-USP

Parte I: das reclamações sobre o centro que existe.

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A palavra centro é um pejorativo na cena política brasileira. Ser de centro é não ter nenhuma identidade. Ser de centro pega mal. Há razões históricas para tanto desprestígio. Puxemos pela memória cansada.

Durante a Constituinte, no final dos anos 1980, quem dava as cartas era um bloco de parlamentares que atendia pela alcunha de “centrão” (o Brasil e sua mania de aumentativos). O centrão era um amebão animado por certas (ou erradas) mucosas do PMDB, que não recusava certas (ou erradas) secreções do PFL. O centrão era o dono do meio de campo daquele jogo (o Brasil e suas metáforas futebolísticas). Para se apossar do controle das maiorias da então chamada “Assembléia Nacional Constituinte”, o centrão dispensava as ideologias. Não tinha programa, plataforma ou ideário – e nisso residia sua força acachapante. Desapegado de parâmetros programáticos, agenciava permutas as mais diversas, levando ao pé da letra a fantasia de que na política se estabelece um “mercado de ideias”.

Um de seus ideólogos (ou um de seus mais desinibidos “desideológos”), o deputado constituinte Roberto Cardoso Alves gostava de repetir um bordão caridoso atribuído a São Francisco de Assis: “É dando que se recebe”. O centrão era cristão. Num país em que, já naquele tempo, a direita não gostava de se apresentar com o seu próprio cartão de visitas, o centrão foi o albergue luxuoso dos que enterravam a própria identidade numa caixa de arquivo morto e se dedicavam a mercadejar coalizões sem coerência e sem inocência. Tudo isso, claro, em nome do povo brasileiro.

Com essa folha-corrida, é evidente, a palavra centro não haveria de ter uma reputação positiva. Não obstante, o centro está vivo e está aí. Mas onde? Ora, na política brasileira atual, o centro está em toda parte. O PMDB, legatário maior do memorável centrão, é seu retrato mais fiel (e, portanto, desfocado). No PMDB a gente encontra de tudo (menos Eduardo Cunha, claro, que este se esconde por trás de si mesmo, de tal forma que quem o procura até consegue vê-lo, mas nunca o encontra, como numa sala de espelhos), de tudo mesmo, e esse tudo, é incrível, está nos lugares mais diferentes e, mais incrível ainda, todos esses lugares ficam no centro. O PMDB é demonstração cabal de que as leis da física quântica valem para a política. E mais: o PMDB é tão de centro que parou de dizer que é de centro, posto que ser de centro pega mal.

Quanto ao PT, que também migrou para o centro, convertido aos milagres de São Francisco de Assis, deixou no passado sua velha identidade, da qual só se lembra quando o chefe se irrita com a imprensa e resolve mandar recados mal-educados para o ministro da Fazenda. Só o que resta de esquerda ao PT é sua birra infantil (ou será senil) com Joaquim Levy. Só. No mais, ele é de centro – mas isso ele não conta pra ninguém.

E o centro continua. Não se esgota no PMDB ou no PT. Imagine. Ele é espaçoso, expansível, fagocitante. Dentro dele mora também o PSDB, que há meses procura se decidir sobre o que fazer com relação a Eduardo Cunha e ainda não chegou a uma conclusão crível. O centro que aí está às vezes pode ser um buraco negro em cujo vórtice o agente hameletiano (mas um hamletiano paródico, muito mais cômico do que o Hamlet original) sucumbe sobre si mesmo. Nesse centro que tudo devora, os desorientados desaparecem misteriosamente – fenômeno que explica o completo sumiço da oposição.

O centro que aí está não tem caráter político. Não tem nenhum caráter at all. Aliás, o centro que aí está se define exatamente por isso, pelo que não tem, pela negativa. Sua identidade é a ojeriza a qualquer identidade. Não sendo coisa nenhuma, esse centro quer tomar conta de todas as coisas: de um cargo de quinto escalão em, vejamos, Furnas? Na Eletrobrás? No Banco do Brasil? Até a Presidência da República (ou mesmo a Vice-Presidência, que anda mais valorizada).

Esse centro é pior do que a saúva. Pior, muito pior do que a corrupção. Vai acabar com o Brasil.

Parte II: da defesa do centro que não há.

Então, a saída está nos extremos? Claro que não. Quanto a isso, registre-se que o centro que aí está não supera os extremos – apenas procura ocultá-los, sob o manto do oportunismo. O que supera os extremos (em vez de acomodá-los em amaciamentos lucrativos) é a construção de uma política que não seja refém de cartilhas doutrinárias (de esquerda ou de direita) e vença com realismo e transparência, dentro de uma ética pública radical, os impasses nacionais. Essa política só pode ser de centro, pois rejeita tanto o vazio programático (das identidades ocultadas pela esperteza) quanto o extremismo (a intolerância a toda dissidência). E esse centro, que ainda não existe, só pode ser o oposto do que aí está.

Se você se lembrou daquela conversa de “terceira via”, naquele tempo em que Tony Blair se declarou um “radical de centro” (1997, 1998), lembrou certo. Naquele discurso de 20 anos atrás havia a pretensão de conciliar, em políticas públicas que combinassem soluções formuladas por pensadores de esquerda (como as fórmulas solidárias de distribuição de renda) e soluções liberais (como o fortalecimento do mercado ou a cultura da competitividade). Era uma pretensão justa e racional. Tinha sua legitimidade. Hoje, porém, ela é insuficiente.

Hoje, o Brasil precisa de um centro que constitua um polo. Parece paradoxal, mas é apenas lógico. O centro que nos faz falta deve trazer conteúdo programático e identidade política. Não se trata mais de uma equidistância entre extremistas, mas de um vetor afirmativo, capaz de vencer os extremistas. Não se trata mais dessa meleca em que as identidades ideológicas se mascaram e se misturam, mas da superação de preconceitos sectários.

O caminho para isso está livre. Só falta coragem.

EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA E PROFESSOR DA ECA-USP

Parte I: das reclamações sobre o centro que existe.

A palavra centro é um pejorativo na cena política brasileira. Ser de centro é não ter nenhuma identidade. Ser de centro pega mal. Há razões históricas para tanto desprestígio. Puxemos pela memória cansada.

Durante a Constituinte, no final dos anos 1980, quem dava as cartas era um bloco de parlamentares que atendia pela alcunha de “centrão” (o Brasil e sua mania de aumentativos). O centrão era um amebão animado por certas (ou erradas) mucosas do PMDB, que não recusava certas (ou erradas) secreções do PFL. O centrão era o dono do meio de campo daquele jogo (o Brasil e suas metáforas futebolísticas). Para se apossar do controle das maiorias da então chamada “Assembléia Nacional Constituinte”, o centrão dispensava as ideologias. Não tinha programa, plataforma ou ideário – e nisso residia sua força acachapante. Desapegado de parâmetros programáticos, agenciava permutas as mais diversas, levando ao pé da letra a fantasia de que na política se estabelece um “mercado de ideias”.

Um de seus ideólogos (ou um de seus mais desinibidos “desideológos”), o deputado constituinte Roberto Cardoso Alves gostava de repetir um bordão caridoso atribuído a São Francisco de Assis: “É dando que se recebe”. O centrão era cristão. Num país em que, já naquele tempo, a direita não gostava de se apresentar com o seu próprio cartão de visitas, o centrão foi o albergue luxuoso dos que enterravam a própria identidade numa caixa de arquivo morto e se dedicavam a mercadejar coalizões sem coerência e sem inocência. Tudo isso, claro, em nome do povo brasileiro.

Com essa folha-corrida, é evidente, a palavra centro não haveria de ter uma reputação positiva. Não obstante, o centro está vivo e está aí. Mas onde? Ora, na política brasileira atual, o centro está em toda parte. O PMDB, legatário maior do memorável centrão, é seu retrato mais fiel (e, portanto, desfocado). No PMDB a gente encontra de tudo (menos Eduardo Cunha, claro, que este se esconde por trás de si mesmo, de tal forma que quem o procura até consegue vê-lo, mas nunca o encontra, como numa sala de espelhos), de tudo mesmo, e esse tudo, é incrível, está nos lugares mais diferentes e, mais incrível ainda, todos esses lugares ficam no centro. O PMDB é demonstração cabal de que as leis da física quântica valem para a política. E mais: o PMDB é tão de centro que parou de dizer que é de centro, posto que ser de centro pega mal.

Quanto ao PT, que também migrou para o centro, convertido aos milagres de São Francisco de Assis, deixou no passado sua velha identidade, da qual só se lembra quando o chefe se irrita com a imprensa e resolve mandar recados mal-educados para o ministro da Fazenda. Só o que resta de esquerda ao PT é sua birra infantil (ou será senil) com Joaquim Levy. Só. No mais, ele é de centro – mas isso ele não conta pra ninguém.

E o centro continua. Não se esgota no PMDB ou no PT. Imagine. Ele é espaçoso, expansível, fagocitante. Dentro dele mora também o PSDB, que há meses procura se decidir sobre o que fazer com relação a Eduardo Cunha e ainda não chegou a uma conclusão crível. O centro que aí está às vezes pode ser um buraco negro em cujo vórtice o agente hameletiano (mas um hamletiano paródico, muito mais cômico do que o Hamlet original) sucumbe sobre si mesmo. Nesse centro que tudo devora, os desorientados desaparecem misteriosamente – fenômeno que explica o completo sumiço da oposição.

O centro que aí está não tem caráter político. Não tem nenhum caráter at all. Aliás, o centro que aí está se define exatamente por isso, pelo que não tem, pela negativa. Sua identidade é a ojeriza a qualquer identidade. Não sendo coisa nenhuma, esse centro quer tomar conta de todas as coisas: de um cargo de quinto escalão em, vejamos, Furnas? Na Eletrobrás? No Banco do Brasil? Até a Presidência da República (ou mesmo a Vice-Presidência, que anda mais valorizada).

Esse centro é pior do que a saúva. Pior, muito pior do que a corrupção. Vai acabar com o Brasil.

Parte II: da defesa do centro que não há.

Então, a saída está nos extremos? Claro que não. Quanto a isso, registre-se que o centro que aí está não supera os extremos – apenas procura ocultá-los, sob o manto do oportunismo. O que supera os extremos (em vez de acomodá-los em amaciamentos lucrativos) é a construção de uma política que não seja refém de cartilhas doutrinárias (de esquerda ou de direita) e vença com realismo e transparência, dentro de uma ética pública radical, os impasses nacionais. Essa política só pode ser de centro, pois rejeita tanto o vazio programático (das identidades ocultadas pela esperteza) quanto o extremismo (a intolerância a toda dissidência). E esse centro, que ainda não existe, só pode ser o oposto do que aí está.

Se você se lembrou daquela conversa de “terceira via”, naquele tempo em que Tony Blair se declarou um “radical de centro” (1997, 1998), lembrou certo. Naquele discurso de 20 anos atrás havia a pretensão de conciliar, em políticas públicas que combinassem soluções formuladas por pensadores de esquerda (como as fórmulas solidárias de distribuição de renda) e soluções liberais (como o fortalecimento do mercado ou a cultura da competitividade). Era uma pretensão justa e racional. Tinha sua legitimidade. Hoje, porém, ela é insuficiente.

Hoje, o Brasil precisa de um centro que constitua um polo. Parece paradoxal, mas é apenas lógico. O centro que nos faz falta deve trazer conteúdo programático e identidade política. Não se trata mais de uma equidistância entre extremistas, mas de um vetor afirmativo, capaz de vencer os extremistas. Não se trata mais dessa meleca em que as identidades ideológicas se mascaram e se misturam, mas da superação de preconceitos sectários.

O caminho para isso está livre. Só falta coragem.

EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA E PROFESSOR DA ECA-USP