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Um massacre a esclarecer

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Por Redação
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Na madrugada da quarta-feira, menos de três dias depois da chegada a Damasco de uma missão da ONU autorizada pelo governo sírio a investigar três possíveis episódios de uso de armas químicas contra os rebeldes que há mais de dois anos combatem a ditadura de Bashar Assad - numa guerra civil que já matou 100 mil pessoas e obrigou 2 milhões a se refugiar em países vizinhos -, o Exército teria atacado com gás sarin áreas controladas pela insurgência na periferia da capital. Vídeos chocantes postados na internet mostram filas de cadáveres, incluindo crianças, envolvidos em lençóis brancos, no que seria o chão de um hospital. Nenhum dos mortos aparentava ferimentos: o sarin mata por paralisia, depois de provocar dolorosos sintomas. Fontes da oposição falaram em 500 vítimas. Outras, em 1.300.As divergências vão muito além dos números. Embora os rebeldes argumentem que Assad aproveitou a presença dos observadores da ONU - hospedados, por sinal, em um hotel a 15 minutos de carro do lugar que teria sido alvejado - para desafiar a comunidade internacional, como se lhes dissesse "pouco me importa", soa mais plausível a réplica do regime, endossada por seus aliados russos, para os quais foi a oposição que perpetrou o massacre, para tirar proveito da estada dos peritos estrangeiros, o que levaria o Conselho de Segurança (CS) a estigmatizar o governo de Damasco. Com isso, ficariam ainda mais incertas as chances de se realizar a planejada conferência de Genebra em que as partes, com apoio externo, dariam os primeiros passos rumo a uma solução negociada para o medonho conflito em que se transformaram os primeiros choques de rua no país, em março de 2011.Em sessão de emergência, o CS adotou uma atitude circunspecta diante da denúncia, pedindo antes de mais nada que os enviados da ONU possam apurar também essa abominação, antes de apontar o dedo para quaisquer de seus possíveis perpetradores. "A preocupação geral", diz a presidente de turno do colegiado, a argentina María Cristina Perceval, "é ter claro o que aconteceu e acompanhar cuidadosamente a situação." Uma coisa parece fora de dúvida: nem Assad nem os insurgentes, muitos dos quais - a começar dos jihadistas da Frente al-Nusra - tratam os civis suspeitos de simpatias pelo regime com a mesma selvageria que os atinge, se guardariam de apontar para o inimigo as armas mais cruéis a que tenham acesso. A Síria não subscreveu a convenção multilateral contra as armas químicas. O ditador, que já pode tê-las usado, levou meses até receber os inspetores da ONU. Mas não tornaria, logo agora, a recorrer aos seus estoques de gases letais. A situação é tão nebulosa que o próprio chefe da equipe das Nações Unidas na Síria, o sueco Ake Sellsttrom, considerou "suspeito" o elevado número de mortos citado nos relatos da oposição. Enquanto o episódio não for apurado por fontes independentes, ficará no ar, quem sabe, até mesmo a hipótese de que nenhuma arma proibida foi lançada nos arredores de Damasco. Ao informar que pelo menos 130 pessoas morreram ali na quarta-feira, o Observatório Sírio de Direitos Humanos, baseado em Londres - principal fonte dos números publicados sobre a carnificina no país -, não afirmou expressamente que foram vítimas do sarin. Os serviços israelenses de inteligência asseguram que armas químicas foram usadas - mas, ao contrário de outras vezes, não responsabilizaram Assad. O presidente dos EUA, Barack Obama, deve torcer em segredo para que não se comprove a culpa do regime. Há um ano ele disse que o uso de armamento químico significaria que Damasco cruzou uma "linha vermelha", obrigando-o a mudar a sua "equação". Ou seja, os EUA seriam compelidos a intervir de alguma forma na guerra síria para precipitar, a quente, a queda de Assad, com o risco imenso de levar o país ao caos, em um conflito entre facções rebeldes igualmente inapetentes. Melhor fazê-lo a frio, mediante entendimentos entre a oposição que não se exilou e o partido do regime, o Baath. Em 2014, afinal, termina formalmente o "mandato" do ditador.