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Uma decisão exemplar do STF

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Por Redação
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Não teve a atenção que merecia no noticiário da imprensa o recente julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de duas importantes ações diretas de inconstitucionalidade que foram interpostas com o objetivo de corrigir mais um excesso das autoridades fiscais. Trata-se da exigência de depósito prévio ou de arrolamento de bens, em valor correspondente a 30% do débito fiscal, para que cidadãos e empresas possam impetrar recurso administrativo no Conselho de Contribuintes questionando cobrança de impostos ou imposição de multas. Essa exigência foi criada em 1998 por meio de uma medida provisória (MP) baixada pelo presidente Fernando Henrique, por pressão da Receita Federal. Ela já constava de um decreto que acabou sendo revogado em 1969 pela Junta Militar, que a considerou "arbitrária". Apesar disso, ela foi restabelecida pela MP 1.699/98, que foi reeditada 41 vezes até se converter na Lei nº 10.522/02. A primeira ação de inconstitucionalidade contra essa lei foi proposta pela OAB. Para a entidade, a exigência da Receita, além de violar garantias fundamentais, não poderia ter sido introduzida por meio de medida provisória, pois a matéria não atende aos requisitos de relevância e urgência previstos pela Constituição. A segunda ação foi impetrada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que alegou que a obrigatoriedade de depósito prévio e o arrolamento de bens cerceiam o direito dos contribuintes ao devido processo legal e o direito que a Constituição lhes assegura de peticionar sem pagamento de taxas. A CNI também alegou que o depósito prévio, além de configurar pagamento antecipado de crédito tributário, é um pesado ônus para os contribuintes que não dispõem de recursos e bens. Além disso, a entidade exigiu tratamento isonômico para todas as partes, lembrando que a Fazenda Nacional dispõe do prazo de cinco anos para abrir processos fiscais, enquanto os contribuintes têm só 180 dias para impugnar cobranças do Fisco. Apesar da Advocacia-Geral da União (AGU) ter refutado esses argumentos, alegando que "depósito" não se confunde com "pagamento" - pois o depósito é restituído quando o Conselho de Contribuintes não dá ganho de causa à Receita Federal -, os ministros do Supremo, por unanimidade, votaram favoravelmente às ações impetradas pela OAB e pela CNI. Segundo o acórdão do julgamento, a obrigação de arrolar bens ou efetuar depósito prévio, como condição para a admissibilidade de recurso administrativo, é uma medida "desarrazoada e descabida" no plano substantivo, por "fazer tábula rasa do fato de que o contribuinte pode não dispor de bens ou determinada quantia para recorrer". Em outras palavras, quem não dispõe de recursos financeiros ou não tem patrimônio na prática ficaria impedido de exercer o direito de defesa previsto pela Constituição, o que é um absurdo. Os ministros consideraram, ainda, que o dinheiro e os bens de cidadãos e empresas não podem ficar imobilizados enquanto o recurso impetrado no Conselho de Contribuintes é analisado. No plano jurídico-formal, o STF foi ainda mais contundente. Num parecer de 25 páginas, o relator, ministro Joaquim Barbosa, lembrou que, no Estado de Direito, o Executivo tem de respeitar as garantias fundamentais, que incluem os recursos administrativos e o princípio do contraditório. E afirmou que a MP 1.699/98 e a Lei nº 10.522/02, ao condicionar o acolhimento desses recursos a depósito prévio ou arrolamento de bens, desrespeitam os direitos individuais e as liberdades públicas. Os demais ministros acompanharam o voto do relator, para quem os excessos do Fisco esvaziam o "civismo político balizador do Estado de Direito". Com base no mesmo argumento, o acórdão do STF aconselha o Ministério da Fazenda a desistir, por vício de constitucionalidade, do projeto de lei que cria a chamada "penhora administrativa", pela qual a Receita teria a prerrogativa de penhorar bens dos contribuintes antes mesmo do ajuizamento das execuções fiscais. Com decisões exemplares como essa, o STF cumpre seu papel de guardião da Constituição e das liberdades públicas.