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Uma fronteira fiscal tênue

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Por José Roberto R. Afonso
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A crise deixou no passado a facilidade de fazer política fiscal pela exuberante carga tributária e pela bonança externa. Mesmo que a economia brasileira se recupere bem e antes dos outros países, será muito difícil repetir a combinação de forte expansão tanto dos gastos públicos federais quanto do superávit primário. A carga tributária está caindo tão rápida e drasticamente quanto subiu nos últimos tempos. É uma mudança tão radical que parece estar passando despercebida. Se nos primeiros meses deste ano o produto interno bruto (PIB) caiu 1,5% ou até 3%, a receita tributária federal deve ter recuado em torno de 10% - e os demais tributos vêm piorando a cada mês. A teoria não explica tal dispersão, muito menos a administração tributária brasileira deixou de ser moderna. O problema é que parece que o fisco virou solução para o crédito - pela falta de melhor acesso a empréstimos bancários e juros civilizados. Pesquisa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) mostra que cerca de metade das empresas considera deixar de pagar impostos como primeira e disparada opção (ante um quinto que atrasaria os bancos e um oitavo, os fornecedores). Mesmo que a economia pare de afundar, a perspectiva para a arrecadação tributária também não é boa, porque cada vez mais o estímulo fiscal contra a crise no Brasil se concentra na redução pontual de impostos, diante do fracasso em aumentar o investimento público e do esquecimento do fomento ao investimento privado. O governo está caindo na sua armadilha: ao conceder incentivos fiscais de forma tão discriminatória, será pressionado para beneficiar cada vez mais produtos e prorrogar as benesses, ainda mais quando as vendas estão em expansão. Para quem gosta de rótulos, é uma típica política anticíclica neoliberal: preferiu reduzir a carga tributária e precisará fazê-lo cada vez mais, no lugar da via keynesiana da expansão de investimentos em infraestrutura. A Federação foi desequilibrada porque se centralizou a receita tributária, o acesso de Estados e municípios ao crédito praticamente desapareceu e a rolagem de suas dívidas com o Tesouro força um superávit primário alto. A crise potencializará os conflitos federativos porque o setor público federal reduziu seu superávit (-1,2% do PIB) e praticamente manteve o dos outros governos (-0,05% do PIB). Na prática, impôs a eles o ônus de cortar gastos - até porque, mesmo que quisessem, governos estaduais e municipais não têm como financiar e gerar um superávit menor. Há uma contradição implícita na estratégia fiscal para enfrentar a crise porque, no Brasil, é muito descentralizada a execução dos investimentos públicos (dois terços por Estados e municípios) e também dos gastos sociais universais - como educação e saúde (em torno de 85%). Mais uma vez, para quem gosta de rótulos, é uma típica política neoclássica - pode levar à redução de investimentos e da proteção social quando impõe o ajuste àqueles governos. Serenidade no enfrentamento da crise não pode virar passe livre para descolamento da realidade. Quem se vangloria da nossa conjuntura fiscal, comparada à das economias avançadas, ignora indicadores comparáveis (nosso déficit nominal subiu para 3% do PIB e a dívida bruta, para 62% do PIB, ambos sem estatais) e, especialmente, a natureza das estratégias. A sustentabilidade fiscal no longo prazo é um princípio imprescindível na nova e dita frouxa política fiscal daqueles países. Em troca da expansão dos gastos, das garantias e da dívida pública no presente estão sendo adotados planos e regras que mostrem a solvência no futuro. Nesse sentido, ter uma Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) reconhecida internacionalmente como abrangente e austera é uma vantagem ímpar para o Brasil e poderá ser um diferencial no pós-crise (quando a verificação das condições de sustentabilidade será ainda mais valorizada pelo mercado financeiro internacional). Antes de tudo, importa atentar que política anticíclica não é justificativa para relaxar ou abandonar a LRF - até porque a própria lei já inclui mecanismos nessa direção, mas que têm sido ignorados. O Executivo federal pode propor ao Senado que os limites de endividamento sejam temporariamente elevados e os prazos para enquadramento, dilatados. Mesmo na polêmica rolagem da dívida estadual e municipal mudanças são possíveis, sem configurar nova rolagem - impossível é o credor concordar diante de tantas vantagens em relação ao devedor. Para tudo isso não é preciso mudar a LRF. É preciso, sim, vontade política e competência técnica. A LRF ainda carece de regulamentação pendente - aprovação dos limites de dívida para a União e do Conselho de Gestão Fiscal. Se for para mudar a lei, que seja para endurecê-la ainda mais, como no caso da criação de gastos permanentes, em especial com pessoal. Neste particular, a LRF falhou e não evitou a falência da Prefeitura de São Paulo em 2004 - aliás, agora se espera que a mesma herança maldita não seja gestada em escala federal (preocupa muito que o custeio cresça nos próximos meses e anos sem que a receita acompanhe o ritmo). O segredo da responsabilidade fiscal não é punir, mas sim prevenir. Uma reforma da LRF seria para adotar regras de melhor operacionalização e visualização, que evitem a criação do gasto a descoberto, inclusive na forma de renúncia tributária. Muito disso passa por uma mudança radical nos instrumentos e no processo orçamentário, financeiro e patrimonial do País. A crise cria a oportunidade para as mudanças. Mas também torna extremamente tênue a fronteira entre o grande fracasso no futuro mais próximo (se não for interrompida a trajetória explosiva do gasto corrente) e o grande sucesso no futuro mais distante (se aproveitada a oportunidade para modernizar e reforçar ainda mais a responsabilidade fiscal). José Roberto R. Afonso, economista de carreira do BNDES, é mestre pela UFRJ e doutorando pela Unicamp