
03 de dezembro de 2012 | 02h06
Mas nenhuma dessas propostas seria capaz de corrigir a demanda atual.
Novos cursos só vão formar médicos após seis anos. Formar novos médicos no sistema atual significa considerar a residência médica indispensável. Porém o número de vagas para residência, apesar das 1.260 criadas recentemente pelo Ministério da Saúde, é ainda inferior ao número de graduandos. Também a residência médica existe apenas em grandes hospitais, que utilizam toda a moderna tecnologia. Desse modo, a residência médica forma especialistas e subespecialistas que não vão trabalhar com a população carente, mas agravar as distorções, indo atuar em áreas mais ricas e centrais das cidades.
Por outro lado, importar médicos envolve grande risco, desde que essa importação não seja feita de países onde o ensino médico prime pela qualidade.
Existe contingente significativo de alunos brasileiros buscando sua graduação em países onde há facilidade de ingresso e cujos cursos não formam o profissional com a qualidade mínima exigida. Uma vez formados, querem exercer a atividade no Brasil. A tentativa de acordos bilaterais reconhecendo automaticamente os diplomas tornou-se inviável, levando os Ministérios da Educação (MEC) e da Saúde a elaborar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeiras (Revalida), para uniformizar os critérios nas universidades federais encarregadas dessa revalidação. Uma proposta ouvida no MEC é de que tais profissionais poderiam trabalhar por dois anos, sob supervisão de tutores, e só depois prestar o exame para revalidação. Propõem até reduzir as exigências do Revalida para facilitar a aprovação, o que nos parece inadmissível.
Nenhuma dessas duas propostas, portanto, resolveria o nosso problema.
Entendo que é o momento de propor um pré-requisito para a residência médica: cumprir dois anos no Programa Saúde da Família, supervisionado pela sua escola. Isso traria impacto de três ordens: fornecer o profissional para locais pouco atrativos, envolver a escola na assistência e reformar o ensino médico.
Diante da gravidade da situação em que nos encontramos, é ingênuo pensar que mantendo a situação atual se consiga corrigir as desigualdades. São necessárias medidas que podem ser consideradas radicais para mudar. Vivemos um tempo de mudança e o ensino médico deve mudar pensando na população desassistida, cuja condição precisa ser recuperada.
Parto do pressuposto de que nenhum país do mundo, mesmo gastando mais de US$ 7 mil per capita por ano, consegue oferecer a moderna tecnologia a todos indistintamente (assinale-se que gastamos menos de US$ 900 per capita). Mesmo porque 80% dos casos, que procuram o médico, podem ser tratados sem esses recursos, que, entretanto, devem ser postos à disposição de quem deles precisa.
Assim, o curso médico deve formar um profissional capaz de atender um paciente em situação de emergência e em situação eletiva, basicamente fazendo diagnóstico e orientando a terapêutica com base em história clínica detalhada e nos sinais obtidos pelo exame físico. Essa característica da Semiologia se está perdendo, já que é mais fácil lançar mão de exames de imagem.
Mas para o curso formar um profissional é preciso que se garanta um exercício da atividade onde, com esses pressupostos, ele poderia atuar. É necessário expor o recém-formado a atuar junto à população, supervisionado pela sua escola, antes de induzi-lo a escolher uma área de especialidade, o que, ao fim, é o que faz a residência médica.
De pouco adianta preparar esse médico se o enviarmos diretamente para a residência, que só existe em hospitais que detêm toda a tecnologia e onde se internam os 20% que necessitam dela. Antes de o curso preparar especialistas precoces, deve fazê-los atuar como médicos capazes de atender a população, sem usar a moderna tecnologia.
Além da supervisão pela sua escola, esses médicos devem contar com especialistas na área em que atuam e com possibilidade de leitos para eventuais internações, constituindo uma rede de serviços assistenciais. Para que a proposta se torne eficaz é ainda necessário corrigir a desigualdade na oferta de vagas.
Enquanto no Tocantins existe uma vaga para cada 4.068 habitantes e em Minas Gerais, uma para 6.665, em São Paulo há uma vaga para 13.193 e no Pará, uma para 19.456. Nas regionais de São Paulo a mesma desigualdade se verifica. Enquanto a regional de São José do Rio Preto tem uma vaga para 3.391 habitantes, a de Ribeirão Preto dispõe de uma para 4.712, a regional da Grande São Paulo conta com uma para 20.700 e a regional de São José dos Campos, uma para 28.957.
O médico recém-formado deve estar pronto, ao sair da escola, para trabalhar junto à população no PSF, por dois anos, como pré-requisito para buscar a residência médica. Assinale-se que quando eu cursei a Faculdade de Medicina, de 1948 a 1953, o curso era de seis anos. Hoje continua de seis anos, mas assistimos a uma avassaladora acumulação de conhecimento e tecnologia.
E o modelo deve abranger todos os recém-formados. Dessa forma, se tomarmos como parâmetro o último ano, em que mais de 13 mil médicos foram formados em dois anos, cobriríamos toda a demanda para uma área que não é atrativa, mas precisa ser atendida.
* CARDIOLOGISTA, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, DIRETOR-GERAL DO HOSPITAL DO CORAÇÃO, FOI MINISTRO DA SAÚDE
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