08 de julho de 2013 | 02h06
Uma das características surpreendentes é a força gravitacional de um movimento liderado por jovens de uma classe média diversificada, em que manifestantes das classes C e D marcharam junto aos das classes A e B. Em poucos dias, o que era uma reivindicação tópica adquiriu escala nacional, atraindo cidadãos urbanos não organizados em 360 cidades. Com isso a pauta de reivindicações ganhou em densidade, diversificou-se e converteu-se num alvo móvel. Um dos fatores de sucesso é seu caráter apartidário, graças ao uso intensivo dessa imagem como seu principal asset político.
Há fatores socioeconômicos, políticos e institucionais a registrar. Um deles é o impacto politicamente persuasivo das questões econômicas. A inflação traduz-se em erosão da confiança da sociedade no compromisso do governo com a estabilidade de preços. Há um regime - o de metas inflacionárias -, ou seja, um conjunto de normas estáveis, que foi deixando de pautar as decisões de governo. O que se reflete no fato de que o teto da meta aos poucos se converteu em piso. Nesse quadro, a explosão do custo dos alimentos e as pressões que exerce sobre o orçamento familiar da imensa maioria dos brasileiros traz à luz a distância entre intenções e resultados das políticas oficiais. Daí a relativa unanimidade em torno ao que está efetivamente em questão: a qualidade dos gastos públicos, condensada na demanda algo irônica por "escolas e hospitais padrão Fifa".
Há evidências de que a entrada das classes médias emergentes no cenário sociopolítico ocorre sob a égide da frustração, apesar dos baixos índices de desemprego. Sabem que pagam impostos, mas recorrem a sistemas privados de saúde e de ensino superior, que estão longe de oferecer os benefícios que as empresas relevantes vendem. Sabem que a carga impositiva é a maior da América Latina e entre os Brics. A valorização do transporte público é sintoma de uma dramática redução na tolerância com o modelo de crescimento inaugurado em 2006 e exacerbado depois de 2008. O que acabou por se esgotar, entenda-se, foi a eficácia dessa agenda econômica em termos político-eleitorais. Por conta de um processo cumulativo: os níveis de endividamento dos usuários do crédito fácil, concedido pelos bancos públicos, subvencionados pelo Tesouro; as evidências de que esse modelo responde aos lobbies da indústria automobilística; as redes minúsculas de metrô e o trânsito pesado nas grandes cidades. Serão esses os primeiros indícios de que as classes médias emergentes estão em via de desenvolver uma agenda pós-Lula (como sugere Elio Gaspari)? A pesquisar.
Outros fatores explicam a escala das manifestações e a recusa dos participantes a deixar-se pautar pela agenda dos partidos ditos populares. Ao contrário, é o movimento social que está pautando as respostas das elites governamentais, no Congresso e nos Executivos federal, estadual, municipal. A suspensão dos aumentos das tarifas, a derrubada da PEC 37, a proposta de tornar a corrupção crime hediondo são exemplos. Como explicar esse tipo de impacto? Minha hipótese é que ele reflete o reconhecimento implícito de uma crise de legitimação política combinada com a crise de representação. A resposta atabalhoada de extrair a fórceps uma reforma política mobilizando a sociedade via plebiscito é uma tentativa canhestra de desatar esse nó, inteiramente novo para governos que se querem populares.
O que há de comum com outros movimentos sociais similares e o que há de específico ao nosso? Todos têm caráter difuso e horizontal, ausência de uma liderança permanente, constituem maiorias que podem ser ocasionais, unidas em torno de uma ou várias causas, articulados pelas redes sociais. O que há de específico são quatro características distintivas: 1) Sua inesperada força gravitacional, su poder de arrastre, em bom castelhano; 2) desenvolve-se num marco democrático, por melhora dos gastos públicos e por uma democracia de melhor qualidade; 3) ocorre no quadro de dominância de um partido cujas imagem e tradição se ancoravam no "monopólio" de representação dos interesses populares; e 4) a julgar pelas respostas recentes das autoridades relevantes e do Congresso, cabe falar numa boa dose de responsiveness (embora canhestra) por parte das elites governamentais - uma característica ausente na Turquia e mesmo em democracias consolidadas.
Há, portanto, lugar para otimismo, pois refletem algumas das qualidades da nossa democracia. Uma delas é a multiplicidade de instituições que limitam os poderes das elites político-partidárias: a relativa autonomia do Sistema de Justiça; as instituições que produzem indicadores e prospecções tecnicamente competentes, divulgados por uma mídia razoavelmente competitiva. Em condições de abertura e de integração do País ao sistema e à sociedade globais, o Twitter e o Facebook atuam como correias de transmissão, de dupla via. Pelas quais as avaliações da mídia internacional, das agências de rating e de uma cultura política mais igualitária são filtradas e internalizadas; e, vice-versa, nossos déficits, meias-verdades e mitos são expostos globalmente.
* LOURDES SOLA É CIENTISTA POLÍTICA, PROFESSORA APOSENTADA DA USP, EX-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CIÊNCIA POLÍTICA, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E AUTORA DE ‘DEMOCRACIA, MERCADO E ESTADO’ (FGV, 2011).
Encontrou algum erro? Entre em contato