08 de setembro de 2013 | 02h09
A espionagem sempre surge em livros de História e também pode surgir em outros, de ficção, mas a questão da soberania poucas vezes é levantada. Os livros nos relatam que a espionagem de um Estado era admitida por outros na condição de que não fosse tão evidente que exigisse reação à altura do dano real ou virtual.
Ela evoluiu na forma e também na maneira de recrutar quem a fazia. O 007 não é um espião - sua missão é eliminar inimigos do Estado. Antes, o espião furtava documentos, copiava e devolvia. Apanhado, era recolhido à prisão. Era prática normal na relação entre Estados. O Estado ofendido protestava pro forma, tomava precauções, apurava o sigilo, mas não cogitava de romper relações diplomáticas nem comerciais. Havendo estado de guerra, o espião era fuzilado. Assim acontecia até que a tecnologia permitiu outros métodos.
No famoso episódio do U2, a guerra fria fervia e os EUA tinham interesse em saber onde estavam os foguetes intercontinentais da URSS. O U2 era o avião perfeito para espionar o inimigo: a altura em que invadia o território do virtual inimigo permitia aos Estados-Maiores norte-americanos vantagem extraordinária sobre os soviéticos. Quando a artilharia soviética abateu um deles e o piloto sobreviveu e foi aprisionado, esse fato colocou Eisenhower em má posição, considerando-se que tinha marcado reunião com Kruchev, em Paris, para dias depois.
A Kruchev o piloto prisioneiro forneceu pretexto para falar das intenções agressivas dos EUA e demonstrar ao mundo que a defesa soviética era capaz de impedir esse tipo de espionagem. Esnobou Eisenhower e, tempos depois, trocou o piloto por um espião soviético preso nos EUA. Isso se deu apesar de a soberania de ambos os Estados ter sido violada.
Espionagem é coisa corriqueira, que os preocupados com segurança devem praticar. Havendo o que esconder, que cuidem de evitar a bisbilhotice.
Da História fica a certeza de que um Estado só espiona outro quando o tem como potencial inimigo ou adversário de fato. Os EUA não espionariam o Haiti. Em vez de demonstrar irritação, deveríamos estar orgulhosos de o Brasil ser um país que merece a atenção dos demais. E mais: se o presidente de um país é espionado, é porque esse país é importante - para quem o espiona, evidentemente.
Quais informações sigilosas os EUA desejavam obter só sua Agência de Segurança Nacional saberá. Insinuar que o "espião" desejava conhecer segredos industriais brasileiros é exagero. A tecnologia das nossas ultracentrífugas deve ter alguma importância, pois o Brasil não quer que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) venha inspecioná-las sem antes avisar. Mas o Brasil, convenhamos, ainda não se equipara ao Irã. Dizer que os EUA queriam bisbilhotar o pré-sal será outro exagero - afinal, o governo brasileiro vai abrir concorrência para sua exploração e deve fornecer informações, mínimas que sejam, aos que tirarão nosso petróleo do fundo do mar.
Como só a NSA sabe o que buscava, concentremo-nos na reação brasileira, que interessa a todos nós.
Quando se descobriu a espionagem, há um mês mais ou menos, qual foi a reação do governo? Ninguém falou em soberania. O ministro das Comunicações - não o Itamaraty - convocou o embaixador dos EUA e uma missão técnica foi tentar convencer os norte-americanos de que espionagem só poderia ser feita se autorizada pela Justiça brasileira. Os norte-americanos desculparam-se - socialmente -, disseram que não podiam atender ao que lhes era solicitado e os brasileiros voltaram de mãos abanando. Não se falou em chamar o embaixador brasileiro para consultas, nem na possibilidade de cancelar a visita de Dilma Rousseff a Barack Obama, nem em soberania.
Revelou-se, então, que a presidente tinha sido espionada. Invocou-se, ato contínuo, a soberania. Como se o Brasil tivesse sido ofendido e ultrajado, decidiu-se dar resposta à altura. Felizmente, não chegamos a O Rato que Ruge, declarando guerra aos EUA - mas exigimos explicações por escrito (para constar dos autos) e o governo deu a entender que aguarda um pedido de desculpas...
A questão que coloco é muito simples. No julgamento de Cesare Battisti, eminentes juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) afirmaram, mais de uma vez, que o presidente da República era soberano! Faltando acrescentar: legibus solutus. A reação do Planalto e da Chancelaria consagra, agora, essa ideia que nos leva ao tempo em que o monarca era absoluto. Quando todos nós, brasileiros, éramos as vítimas da espionagem, o governo procurava solução técnica para o problema. A soberania do povo brasileiro - que é, afinal, o sujeito dela - não era posta em causa. Quando a correspondência de Dilma foi bisbilhotada, a soberania brasileira teria sido violada.
Seria preciso apontar algo mais para marcar o tipo de governo que temos? Que ideia a presidente da República faz do que seja soberania e de quem seja seu titular? Afinal, a soberania reside no povo ou na pessoa da presidente da República?
A reação oficial indica que o Estado Democrático de Direito foi mais uma vez ofendido em suas bases. E foi ofendido pelo Executivo, que deve apoiar-se na opinião de ilustres ministros do STF.
Oliveiros S. Ferreira é professor da USP e da PUC-SP, e membro do Gabinete e Oficina de Livre Pensamento Estratégico. E-mail: www.olisfer@uol.com
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