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Vaias tinham outra causa

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Por Mauro Chaves
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Não, não foi nada disso que se disse. A classe média esfolada, o povão da arquibancada e mesmo a zelite supernumerada (apesar da recente confissão presidencial de que seu governo é para ela) até que podiam ter seus motivos para vaiar, conforme os diferentes graus de decepção com o chefe de Estado e governo. Mas lembre-se que o teflon presidencial ainda não estava riscado, não estava bem claro que o apagão aéreo era um apagão de governo e, sobretudo, ainda não tinha ocorrido a segunda tragédia, nem a acachapante ausência da condolência presidencial local, em razão da cirurgia para remoção de um simples terçol (sem que se explicasse por que não o usual tratamento clínico, com uma pomadinha de gentamicina ou de ciprofloxacino aplicada no hordéolo presidencial). As vaias tinham outra causa e, para bem entendê-la, conviria lembrar as tentativas de capitalização da emoção esportiva nacional, começando pela exploração do que toca mais profundamente a alma brasileira: o futebol. Logo antes do início da última Copa o presidente fizera uma escalafobética videoconferência com a seleção, que deixou a todos - jogadores, treinador e Nação - profundamente constrangidos. A certa altura, ele disse: "Parreira, eu estou achando o Ronaldinho Gaúcho muito sério na hora de cobrar as faltas. Será que ele não pode sorrir antes das cobranças?" É claro que o técnico só poderia responder como o fez: "Quando vai cobrar faltas, ele fica concentrado. Por isso ele fica sério." Antes o presidente já comparara o mesmo jogador - então considerado o melhor do mundo - a seu ministro Palocci. O ministro e a seleção deram no que deram. Nunca-antes-neste-país um presidente da República se valorizou tanto como torcedor de um time de futebol e tentou se apropriar de sua imagem, como o fez o atual presidente, em relação ao Corinthians. Nunca-antes-neste-país um time de enorme tradição chegou a tamanha humilhação, tanto pelo encolhimento técnico quanto pela degradação administrativa. É claro que a relação de causa e efeito pode aí ser atribuída, tão-somente, ao que já está sendo considerado um antológico pé-frio esportivo presidencial. Mas não resta dúvida de que a tentativa de exploração política de uma genuína e espontânea afeição popular, o objetivo de cooptar torcidas - julgando que estas se deixam seduzir com o mesmo langor dos áulicos aliados -, tem sido uma desastrada estratégia do chefe de Estado e governo. E é neste cenário reativo, dos não-cooptados, que se inserem as vaias monumentais do Maracanã. No inconsciente coletivo ali representado por 90 mil almas estava o medo de que o Pan Rio 2007 virasse o hexa fracassado ou o meu Corinthians "patrocinado". Depois do uso e abuso do nome do santo Esporte em vão, e depois do exagero das metáforas e parábolas nos improvisos - em que só não faltavam chutes -, a torcida geral resolveu isolar o Esporte, para proteger seu valor, ante tantos outros já aviltados, corroídos, quando não destroçados pelo marketing político. Em cada uma das seis ensurdecedoras vaias que, desobedecendo às conspícuas pesquisas de avaliação de popularidade dos institutos, irromperam com estrondo no velho (e ainda maior) templo do Esporte nacional, à simples menção do nome do presidente, misturadas e multiplicadas estavam, certamente, diferentes tipos de sonoridade - fossem o amassar das notas do mensalão e dos dólares na cueca, o chuchar frenético das sanguessugas ou os gritos e sussurros dos famintos do Fome Zero. Mas o barulho maior, sem dúvida, era o da imprecação contra o panem et circenses. O pão esmolado do Bolsa-Família e o circo mambembe da exploração política do Esporte eram ali rechaçados pelos 90 mil que representavam, sim, o povo brasileiro - pois só a unanimidade burra consideraria verdade absoluta a boutade do dramaturgo segundo a qual "no Maracanã se vaia até minuto de silêncio". Na verdade, o que lá já se vaiou foi finado impropriamente homenageado. O que se vaiou e sempre se vaiará naquele imenso espaço de livre manifestação da sensibilidade popular brasileira é a tentativa de enganação, de ludibrio. O que disse o inconsciente coletivo das 90 mil almas do Maracanã foi, por exemplo, que não adianta escamotear, com o céu de brigadeiro da economia, o inferno dos brigadeiros do apagão aéreo. Independentemente de se ter gasto dez vezes mais do que o previsto, o Brasil saiu-se bem nos Jogos Pan-Americanos que o Rio de Janeiro sediou, com competência. E o presidente Lula agiu com sabedoria ao não comparecer ao encerramento e sofrer outro constrangimento - embora não tenha escapado de outra estrepitosa vaia (à simples menção de seu nome, na cerimônia), semelhante às que tem recebido por aí, inclusive no Nordeste. Dessa forma, por sobre as medalhas, os recordes e o sucesso de grande parte de nossos atletas, pairou a dignidade do Esporte não contaminado pela exploração política. Esta pode ter sido a grande medalha de ouro que ganhou a sociedade brasileira. Agora, voltando ao Corinthians, a esta altura talvez seus fiéis torcedores devessem organizar uma grande caravana rumo ao Planalto, para tentar convencer o presidente a torcer por outro time. Poderiam argumentar que, sendo presidente de todos os brasileiros, deveria agora fazer um rodízio anual de torcida por Estado (os times paulistas já foram muito contemplados, via Corinthians). Talvez convencessem o presidente a torcer, por exemplo, pelo glorioso e tradicionalíssimo Clube Náutico Capibaribe, de seus conterrâneos, dando assim uma folga (e uma chance de não-rebaixamento) ao tão sofrido clube do Parque São Jorge.