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Violências contra os contribuintes

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Por Cid Heraclito de Queiroz
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Os órgãos fazendários têm de aplicar todos os seus esforços na cobrança dos débitos fiscais, mas não podem olvidar que, no Estado de Direito, têm de tratar civilizadamente os contribuintes e nunca supor que todos são sonegadores efetivos ou potenciais. Na profícua gestão do ministro Delfim Netto na pasta da Fazenda, foi criada a Secretaria da Receita Federal, que logo desenvolveu um inspirado Programa de Integração Fisco-Contribuintes, a fim de que estes fossem esclarecidos sobre os seus direitos e orientados a cumprir os seus deveres tributários. Para a cobrança dos débitos fiscais a Fazenda Pública dispõe das garantias e dos privilégios enumerados pelo Código Tributário Nacional e de uma ação judicial especial, a execução fiscal (Lei nº 6.830/80, elaborada por uma comissão de procuradores da Fazenda e da República), na qual a defesa do contribuinte deve ser precedida de garantia por meio de depósito em dinheiro, fiança bancária ou oferecimento de bens próprios ou de terceiros à penhora. A inscrição do débito no Registro da Dívida Ativa importa na presunção de certeza e liquidez do crédito fiscal, tem o efeito de prova pré-constituída, suspende a prescrição e impede o fornecimento das certidões negativas. A lei tipifica e pune os crimes contra a ordem tributária. Em tais condições, não podem ser toleradas as violências da Fazenda Nacional contra os contribuintes, como: Levar a protesto o débito fiscal, já representado por um título privilegiado, a Certidão da Dívida Ativa; incluir os contribuintes nos cadastros de devedores civis e comerciais mantidos por entidades privadas; delegar a entidades bancárias privadas a cobrança amigável da dívida ativa; efetuar a chamada "penhora online" de saldos de contas bancárias. E, agora, surpreendentemente incluída nos anexos do "II Pacto da República", a penhora administrativa (por ordem não de um juiz, mas de um funcionário) de bens dos devedores. O protesto, a par de desnecessário, não está, no caso, autorizado pela lei e impõe aos contribuintes o ônus das custas cartoriais. Os cadastros privados dos inadimplentes prestam serviços aos estabelecimentos bancários e comerciais, registrando as impontualidades de seus clientes. Nada têm que ver com o crédito fiscal. A inclusão de contribuintes nesse cadastro agride a garantia constitucional de inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Com o seu nome inscrito nos cartórios de protesto e nas entidades privadas de proteção ao crédito, os contribuintes serão confundidos com devedores de prestações comerciais e outras dívidas comerciais ou civis. A delegação a entidades bancárias da cobrança amigável da Dívida Ativa da União viola a competência constitucional da Procuradoria-Geral de Fazenda Nacional, estabelecida em nossa Carta Magna graças à atuação de toda a classe dos procuradores e de parlamentares do porte de Euclides Scalco, Nelson Jobim, Roberto Brant, Bonifácio de Andrada, Francisco Dornelles, Bernardo Cabral, José Serra, César Maia e outros. A lei só admite duas modalidades de cobrança do débito fiscal: amigavelmente, pela Receita Federal ou pelas Procuradorias da Fazenda Nacional, ou judicialmente, por meio de execução fiscal. A penhora online de saldos de contas bancárias é abominável, pois, inobstante os privilégios do Fisco, os cidadãos têm obrigações constitucionais com a habitação, a alimentação, a educação e a saúde de seus familiares e o próprio pagamento de impostos (IPTU, IPVA, Imposto de Renda). Tal medida se assemelha a um assalto. E a penhora administrativa viola, gritantemente, as garantias constitucionais relativas ao direito de propriedade (artigo 5º, XXII) e à privação dos bens dos cidadãos sem o devido processo legal, necessariamente judicial (artigo 5º, LIV). É própria para uma ditadura. Essas medidas atentam contra a dignidade dos contribuintes e constituem tratamento degradante e "tortura fiscal", que a Constituição (artigo 5º, III) repele, ensejando a competente indenização (artigo 5º, XLIII). Tortura não é apenas a violência praticada nas masmorras policiais, nos porões das ditaduras ou nos covis dos bandidos. Torturar significa supliciar, impor sofrimento, afligir, atormentar alguém por qualquer modo. É o grande tormento do espírito (conforme Houaiss e Aurélio). As multas escorchantes, a burocracia sufocante e, sobretudo, as ações abusivas e violadoras das garantias constitucionais dos cidadãos são formas de tortura fiscal. Essas medidas, outrossim, constituem uma verdadeira "fábrica" de processos judiciais, ao induzirem os contribuintes à propositura de ações para anular os atos abusivos e buscar as devidas indenizações. Como, no plano federal, o número de execuções fiscais cresceu espetacularmente, de 45.493, no valor de R$ 2,8 bilhões, em 1990 para cerca de 2 milhões, no valor de R$ 651 bilhões, no presente, é evidente que a Justiça Federal ficará literalmente paralisada. Aliás, esse número gigantesco de débitos fiscais decorre de: a carga tributária elevadíssima (40% do PIB); multas fiscais de 50%, 100% e 150% sobre o valor do imposto, incompatíveis com a atividade econômica e a moeda estabilizada; burocracia fiscal que induz os contribuintes a erros; fatos geradores, bases de cálculo e alíquotas inadequados; calote nos créditos dos contribuintes; sistema tributário inflexível, mesmo nas crises sociais ou econômicas; e falta de uma câmara de compensação entre a Dívida Ativa (créditos fiscais) e a Dívida Passiva (precatórios, restos a pagar, etc.). A Nação tem de reagir a tais violências, que não se coadunam com as práticas constitucionais e democráticas nem com o espírito pacífico do povo brasileiro. Cid Heraclito de Queiroz, advogado, foi procurador-geral da Fazenda Nacional