Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Visibilidade e poder democrático

Exclusivo para assinantes
Por Roberto Romano
3 min de leitura

A luta entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) define uma nova e importante etapa na democratização do Estado brasileiro. Como previsível, os intocáveis do Judiciário aliam-se aos congressistas e políticos do Executivo, ampliando a campanha contra a imprensa. Novamente o erro é atribuído a quem divulga os males institucionais. A publicidade integra a doutrina e a prática do Estado moderno. Como o Brasil só com boa vontade merece o nome de plena democracia (o nome certo do nosso regime é federação oligárquica), até hoje venceram o privilégio e a impunidade. Descobertos os seus erros, os donos dos palácios desejam aplicar viseiras novas no Ministério Público (MP) e na mídia."São proveitosos o ato justo e a obediência às leis, quando existem testemunhas da conduta. Mas se não corre o risco de ser descoberto, o indivíduo não precisa ser justo." A frase vem do sofista Antifonte (século 5.º a.C.), mas serve com perfeição às nossas elites. O debate sobre a visibilidade do justo ou injusto marca o Ocidente. Platão narra a fábula de Giges: pastor humilde, o herói descobre um anel que, se girado no dedo, o torna invisível. Ele usa tal privilégio para matar o governante, ganhando a rainha e o trono. O mito de Giges ilustra a razão de Estado: o poderoso busca o sigilo para seus atos, mas tenta ver o que se passa nas casas das pessoas "comuns" (sobretudo nos bolsos) e nos países estrangeiros. Nasce daí a censura unida às polícias secretas, à espionagem, ao desejo de impor aos governados normas éticas jamais seguidas pelos dirigentes.O ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança é a base histórica das atuais políticas autoritárias. O governante acumula segredos e deseja que os súditos sejam controlados. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre cidadãos e dirigentes.Na aurora dos tempos modernos, segundo um fino analista da razão absolutista, "a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade, o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (...) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (...) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar" (Jean-Pierre Chrétien-Goni).A democracia, surgida contra o poder absoluto, instaurou a visível responsabilidade política dos governantes. Na "accountability" os operadores de cargos públicos (do rei aos juízes) tornam os seus atos visíveis para a cidadania. Mas o século 19 trouxe a contrarrevolução napoleônica e a Santa Aliança. Some a transparência no exercício do poder. Como fruto tardio do recuo político e jurídico, surgem as ditaduras que impedem as liberdades públicas, em especial a de imprensa. Ocorre, ao mesmo tempo, uma fratura na ética democrática.A ética correta, na democracia, não se imiscui na vida coletiva com uma tábua de valores externa aos grupos sociais. Os monopólios do Estado (força física, impostos, norma jurídica) permitem-lhe controlar os interesses particulares. Mas não raro o Estado ultrapassa os seus próprios limites. As revoluções modernas ergueram barreiras contra as pretensões oficiais. Mesmo assim, na Alemanha nazista, na União Soviética (URSS), nas diversas ditaduras e até em países democráticos, o Estado arrogou-se o direito de impor valores e doutrinas sobre a ciência, as artes, a vida econômica. Como exemplos temos a eugenia contra os fracos (o caso Buck versus Bell, decidido pelo juiz Oliver Wendell Holmes) e a "genética socialista" (as teses de Trofim Denissovitch Lyssenko que arruinaram a URSS). Os dois casos mostram que o poder sem peias gera frutos malditos. A imprensa domesticada chega ao escárnio: o jornal mais mentiroso da História é o Pravda (que significa "a verdade", em russo).Como harmonizar o Estado e a vida livre?A resposta reside na democracia, no Estado de Direito, no qual a sociedade política segue leis interpretadas pelo Judiciário. O Executivo tem uma barreira nos demais Poderes. Os alvos sociais precisam ser examinados no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Para que os interesses sejam discutidos é imperativo que eles sejam visíveis - daí a necessária regulamentação do lobby - e, por sua vez, os legisladores e juízes devem ser vigiados pelo povo soberano. Quem, no poder, se imagina acima do público ("os leigos") atrai, como dizia Immanuel Kant, a desconfiança generalizada. E reabre as vias sangrentas pisadas por todos os Giges ocidentais, poluindo a fé pública, fonte de liberdade e segurança. Na República os poderes são transparentes, o que inclui togas, fardas, batinas, capelos acadêmicos. A visibilidade absoluta só existe no Paraíso, mas o Estado sem ela é tirania. Conforme Norberto Bobbio, "todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para si mesmo uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome" ("o poder mascarado").Vivemos uma inusitada crise estatal. Crise bem-vinda, pois nosso Estado apresenta os estigmas do segredo e do autoritarismo, técnicas ditatoriais que arrancaram dos cidadãos o hábito de controlar os governantes, legisladores, magistrados. Cabe à cidadania assumir a sua dignidade, pondo os que se julgam onipotentes no devido lugar. "Autoridade", na ordem democrática, significa "ser autorizado" pelo povo soberano. Mas os nossos poderosos - no Executivo, no Legislativo, no Judiciário - fingem nada saber sobre o assunto. O requisito da emancipação política é o livre pensamento, a livre imprensa, da qual fogem os tirânicos Giges brasileiros. Como o diabo da cruz.