
26 de abril de 2013 | 02h04
Lembrei-me dessa partida de xadrez no Aeroporto de Viracopos. Um homem pôs o laptop na bolsa, dirigiu-se a mim e disse: "Há uma frase interessante aqui, na internet". Encorajei-o com o olhar. "Discutir com esse governo é o mesmo que jogar xadrez com um pombo. Ele sapateia no tabuleiro, desarranja todas as peças e sai com o peito estufado, proclamando vitória." A frase fez-me pensar e os fatos foram se desenrolando dentro dela, como se ganhassem um novo trilho e nova luz.
Dilma Rousseff debatendo a inflação, por exemplo. Os índices ultrapassaram as metas e, levemente, o nível de tolerância fixado pelo próprio governo. Muitos, naturalmente, se inquietaram com a inflação. Numa de suas entrevistas, Dilma declarou que a ênfase no aumento de preços é algo de quem torce contra o Brasil, transformando o tema num jogo em que se defrontam torcedores pró e contra o Brasil. E com isso fez o País e ela se tornarem uma coisa só, numa amálgama verde-amarela que não nos deixa nenhuma chance de vitória. Saiu como um pombo proclamando vitória.
As regras do xadrez foram para o espaço de novo com Graça Foster, presidente da Petrobrás. "Acho lindo o engarrafamento", disse ela sobre o aumento do número de carros. Como executiva, queria mostrar que seu negócio é produzir e vender petróleo e seu foco, o crescimento da empresa e a prosperidade dos acionistas. Nenhuma preocupação com a mobilidade urbana, nosso drama nas metrópoles, nem com o aumento de emissões de CO2, o drama planetário. O mundo empurra os executivos das grandes empresas para ideias bem mais avançadas do que o exclusivo foco no lucro. Decerto ela conhece o jogo. Apenas quis dar uma sapateada nas pedras do tabuleiro. Pensar como um vendedor de biscoito ou de água mineral no engarrafamento.
Já na política, sapatear é pouco. O governo e seus aliados passam com um trator sobre a oposição e criam uma lei para tornar inviáveis novos partidos. Isso depois de ter cooperado ativamente para a formação de um novo partido que fortaleceria suas bases. São os pombos mais agressivos. Embaralham as peças, fazem cocô e saem com o peito estufado: foi pelo bem do País.
Em escala continental, o xadrez será mais surpreendente ainda. Nicolás Maduro venceu na Venezuela. Mas venceu mesmo? O socialismo do século 21 entra em declínio e estamos nas duas primeiras décadas. Com o país dividido, inflação de 25%, 80% dos alimentos importados. O socialismo do século 21 está se tornando vírus tropical da doença holandesa. Dependente do petróleo, a Venezuela não consegue diversificar satisfatoriamente sua indústria. Em Buenos Aires, grandes manifestações de rua mostram a resistência ao projeto de Cristina Kirchner de controlar a Justiça. Sem falar na insatisfação econômica, nos falsos índices oficiais de inflação.
A situação do Brasil é bem confortável, o próprio Financial Times, numa comparação negativa com o México, reconheceu pontos fortes na economia brasileira. Ainda assim, o medo começa a bater e o jogo, a ficar mais duro. A retórica eleitoral do governo não deixa dúvida de que vai destinar à oposição o papel de Joseph K de O Processo, de Kafka: tudo o que falar vai se voltar contra você.
Esse embaralhar do jogo nada vale nos momentos de verdade. Maduro abandonou o espírito de Hugo Chávez, que lhe aparece em forma de passarinho. E soltou o verbo: "Poderia ter-me matado" - referia-se ao manifestante que o interceptou na tribuna e lhe tomou o microfone na cerimônia da posse. Ao menos ficou claro que seu esquema de segurança não presta.
Os ventos mudam em Caracas e vão mudar na América do Sul. A oposição não pode ficar só apanhando e dizendo: "Olha o que fizeram conosco". É preciso jogar um xadrez real, discutir entre si e encontrar meios de somar forças. Ela não precisa repetir que ama o Brasil nem usar boné da Petrobrás. A inquietação com a alta inflacionária já é uma forma de querer bem o País. E quanto à Petrobrás, o petróleo é nosso, mas as bobagens, não.
Embora o cotidiano pareça cheio de absurdos, as perspectivas são boas no longo prazo. Li na Atlantic interessante artigo sobre a importância de dar um sentido à vida. A articulista, Emily Smith, afirma que isso é mais importante que a busca da felicidade. Baseia-se na vida e obra do psiquiatra Viktor Frankel e sua experiência num campo de concentração. O próprio Frankel suportou melhor o campo porque foi para lá por amor aos pais. Publicou um livro chamado O Homem em Busca do Sentido. Pelo que li, o sentido pode ser encontrado no amor à família ou mesmo numa profissão.
Mas existe esse nesga de sentido voltada para o país, para o futuro comum, que não deve ser desprezada. Esse sentido pode materializar-se num programa, num conjunto de atitudes, num desejo de mudança. Tudo isso também depende da existência de uma oposição.
No passado, a oposição cantava Bob Marley para o povo: get up, stand up, fight for your rights. No Brasil esse processo será invertido: a sociedade é que vai cantar Bob Marley para a oposição. Com visão de médio prazo, trabalho cotidiano, sem estar fixada apenas nas eleições, é possível, aos poucos, descortinar um caminho diferente do atual, diferente do que o antecedeu, uma resposta às novas circunstâncias do País. Só assim é suportável o xadrez com os pombos: encontrar um sentido no futuro do País.
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