
09 de fevereiro de 2012 | 03h10
Como se sabe, todas as manchetes servem a interesses e Yoani Sánchez também serve, mesmo que involuntariamente. Ela tremula como um estandarte nas mãos dos opositores do regime dos irmãos Castro, principalmente dos opositores de direita - pois é também possível uma oposição à esquerda, como logo veremos.
Com frequência os relatos sobre as desventuras da blogueira vêm junto com um discurso que procura caracterizar a ditadura cubana como a tragédia inevitável, fatal, de qualquer sonho socialista. Esse discurso se vale de Yoani para mentir, o que é bem fácil constatar. Todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade, como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a Revolução Americana. Mesmo agora, a partir do final da 2.ª Guerra, inúmeros governos declaradamente socialistas se sucederam na Europa, em perfeita convivência com a sociedade de mercado, sem que isso acarretasse uma degeneração de corte totalitário. Tanto é assim que, no mundo contemporâneo, o ideário socialista de perfil não autoritário foi acolhido como proposta legítima e até mesmo necessária à normalidade democrática.
Portanto, é falso o discurso direitista que atribui os padecimentos (reais) do povo cubano ao DNA de qualquer projeto de sociedade sem pobreza. A construção da tirania em Cuba não tem origem na rebeldia dos que se insurgiram contra a ditadura de Fulgêncio Batista, mas na conformação do Estado aos moldes ditados pela União Soviética.
Fora isso, o autoritarismo em Cuba tem sua origem na esquerda, sem dúvida, mas, em matéria de autoritarismo, a direita delinquiu muito mais em outros países. Avesso a essa ululante evidência, o discurso direitista instrumentaliza a figura de Yoani Sánchez para alardear que toda plataforma socialista está fadada ao totalitarismo e à escassez - e que só há liberdade num ambiente baseado mais no mercado do que na justiça social, mais na ostentação do que na dignidade humana.
Oportunista, esse discurso nunca menciona o bloqueio que os Estados Unidos impuseram à ilha há exatos 50 anos (ele teve início no dia 5 de fevereiro de 1962). A própria Yoani, é interessante notar, não vai por aí. Em mais de uma ocasião ela pediu em seu blog a suspensão desse embargo "absurdo". Ao mesmo tempo, ela cuida de alertar para algo que é profundamente verdadeiro: o bloqueio pune o povo, é verdade, mas, perversamente, convém aos irmãos Castro, que se valem dele para culpar os Estados Unidos por tudo o que acontece de ruim. Tanto que, para ela, fim do embargo seria "o golpe definitivo contra o autoritarismo sob o qual vivemos".
Há poucos dias, uma vez mais, Yoani teve negado o seu pedido para viajar para o Brasil (pela 19.ª vez, segundo sua contagem). De novo, foi notícia. Ela queria vir ao lançamento do documentário Conexão Cuba-Honduras, de Dado Galvão, em que aparece como entrevistada. Sem a presença de sua convidada mais ilustre, o lançamento foi adiado.
Enquanto isso, a injustiça prolonga-se em Havana. Muitos, hoje, no Brasil e em Cuba, apoiam a ditadura cubana. Até mesmo no caso de Yoani, a quem acusam de ser remunerada por organizações de direita e de ganhar de presente recursos avançadíssimos de tecnologia digital para fazer contrapropaganda. Logo, não movem uma palha pelos direitos dela.
O curioso é que, mesmo se fossem verdadeiras, as acusações não poderiam justificar o arbítrio. O direito de ir e vir é um direito fundamental da pessoa humana, e não apenas de quem concorda com o governo. Em qualquer democracia os direitos fundamentais de um cidadão não estão condicionados às opiniões dele. Em Cuba, porém, é assim que funciona. E ainda há os que, em nome dos ideais de esquerda, batem palmas para a opressão, dizendo que na ilha não há fome, não há morador de rua, todos têm escolas e hospitais à vontade, e que, diante disso, a falta de liberdade é um reles detalhe. Outra vez: mesmo se aceitarmos como verdadeira essa afirmação - e não há comprovações empíricas de que ela seja realmente verdadeira -, mesmo assim ela não tem validade política, pois o suposto atendimento das necessidades materiais não compensa a falta de liberdade. Aliás, lá mesmo, em Cuba, na prisão americana de Guantánamo, os prisioneiros fazem suas refeições diariamente, entre uma tortura e outra, além de contarem com médicos e dentistas de plantão. Isso não significa que vivam "numa sociedade justa". Eles vivem encarcerados, isso sim. Comida, cama, escola e hospital não são suficientes para que se tenha justiça social, paz e democracia. E sem liberdade constituem a negação dos ideais de igualdade.
Por esse ângulo é que podemos entender o lugar de uma oposição de esquerda à tirania dos irmãos Castro, uma oposição que não se confunde com as causas da direita. Ela não se serve da falta de liberdade como pretexto, mas toma a liberdade como fim. Para ela, a livre comunicação das ideias, "um dos mais preciosos direitos do homem", segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, não é meramente um capricho liberal, mas uma conquista de toda a humanidade, na exata medida em que os direitos sociais não beneficiam apenas um ou outro sindicato, mas toda a sociedade. Ao romperem com a democracia, os ditadores em Cuba traíram o sonho que um dia representaram. Por isso também os opositores de esquerda defendem os direitos de Yoani Sánchez.
*Jornalista, é professor da USP e da ESPM
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