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A Câmara e o interesse público

Abrandamento da Lei da Ficha Limpa afasta a Câmara do melhor interesse público

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Por Notas & Informações
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A cúpula do Congresso Nacional, que pode ser vista imponente acima da Câmara dos Deputados, simboliza a abertura da Casa à multiplicidade de vozes, ideias, anseios e valores da sociedade brasileira. Em suma, aquele é o espaço da concertação política por excelência, fundamental para que prevaleça o bem comum acima dos interesses paroquiais.

Sob a presidência de Arthur Lira (PP-AL), no entanto, a Câmara dos Deputados tem feito movimentos que a afastam de seu nobre desígnio. Matérias importantes aprovadas pela Casa nas últimas semanas, além de outras em discussão, colidem frontalmente com o melhor interesse público. Vejamos.

Há poucos dias, os deputados aprovaram o Projeto de Lei (PL) 10.887/18, que altera a Lei 8.429/92. Não há dúvida de que a Lei de Improbidade Administrativa há muito tinha de ser modernizada. Se tinha como finalidade coibir malfeitos na gestão da coisa pública, ao longo de quase 30 anos de vigência a lei se converteu em uma perigosa fonte de insegurança jurídica, instrumento de indevida ação política do Ministério Público e fator inibidor do ingresso de bons quadros profissionais na administração pública, entre outras distorções. Entretanto, a forma açodada como o projeto passou a tramitar desde a posse de Lira e a natureza das mudanças aprovadas mais revelaram a sobreposição dos interesses dos parlamentares, muitos dos quais envolvidos em ações de improbidade – como o próprio Lira –, do que o aprimoramento necessário da lei tendo sempre como norte o interesse público.

A proposta de reforma política em tramitação na Casa está igualmente descolada dos interesses da sociedade. No balaio há claros retrocessos, como a volta do financiamento de campanhas políticas por empresas e a permissão de coligações partidárias em eleições proporcionais, e aberrações como o chamado “distritão”, sistema que enfraquece os partidos – e, consequentemente, o diálogo – e privilegia indivíduos.

Agora, no que pode ser visto como um novo movimento de autodefesa da chamada classe política, os deputados acabam de aprovar um projeto que abranda a Lei da Ficha Limpa, uma grande conquista da sociedade brasileira. Por 345 votos favoráveis e 98 contrários, os deputados acabaram com a pena máxima prevista na lei, a inelegibilidade, para os casos de governantes que tiveram suas contas rejeitadas pelos órgãos de controle e foram punidos apenas com multa.

Hoje estão inelegíveis por oito anos os administradores públicos que tiveram suas contas rejeitadas por “irregularidade insanável” em decorrência de “ato doloso de improbidade administrativa”. A Lei da Ficha Limpa não faz menção ao tipo de pena aplicada a cada caso. O deputado Enrico Miasi (PV-SP), relator do projeto, propôs uma ressalva às condenações que mantêm elegíveis os cidadãos que, embora tenham tido suas contas rejeitadas, receberam apenas pena de multa como punição. “Não se aplica (a inelegibilidade) aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares, sem imputação de débito, e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa”, diz o texto aprovado pelo plenário da Câmara.

O relator defende que a aprovação do projeto “representa incremento da segurança jurídica”, haja vista que alguns gestores públicos punidos com multa recorrem ao Tribunal Superior Eleitoral para manter a elegibilidade.

Ora, a inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa não tem, e não deve ter, relação com o tipo de punição, penal ou administrativa, que o mau administrador venha a receber por ter suas contas reprovadas. A inelegibilidade advém, após processo no qual se garantiu a ampla defesa ao gestor público, que, por sua reconhecida incapacidade para bem administrar os recursos públicos sob seus cuidados, acabou tendo suas contas reprovadas. Ademais, a lei fala em dolo para efeitos de inelegibilidade. Ou seja, como ser tolerante com o gestor que teve a intenção de malversar recursos públicos, mas foi punido apenas com pena de multa?

O projeto seguiu para o Senado, onde se espera que a condescendência com a incúria no manejo de recursos públicos seja barrada.