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A crise se aprofunda no Peru

Muitas características da crise política de lá têm estreita semelhança com a crise no Brasil.

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Por Notas & Informações
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Após uma tentativa abortada de impeachment em setembro, o Congresso do Peru aprovou na noite de segunda-feira a deposição do presidente Martín Vizcarra. A seis meses de novas eleições presidenciais, o episódio é só o mais recente capítulo de uma crise política que vem de longe e, tudo indica, está longe de terminar.

É a segunda vez em três anos que o Congresso derruba um presidente. Vizcarra assumiu no lugar de Pedro Pablo Kuczynski, que renunciou antes de sofrer impeachment. Ele é acusado de receber propina em projetos de obras públicas durante seu mandato como governador da província de Moquegua (2011-2014). Embora nada tenha sido ainda terminantemente provado, a Constituição peruana prevê a possibilidade de impeachment se o presidente for considerado “moralmente inadequado” por 2/3 do Congresso.

No ano passado, Vizcarra dissolveu um Congresso que relutava em votar as reformas políticas propostas por ele, e convocou novas eleições legislativas. Mas a configuração do novo Parlamento pouco foi alterada. Seus opositores seguiram centrando fogo sobre sua ética e sua condução da pandemia. A média de mortes per capita no Peru oscila entre a segunda e a terceira pior do mundo. A economia encolheu quase 16% em 2020 e deve encolher mais 12% no próximo ano.

Mas um sintoma emblemático da crise é que o presidente caiu muito mais por seus desafetos no Congresso do que pelo clamor popular. Sua aprovação estava em 58% e raramente caiu abaixo de 50%. Pesquisas locais apontam que 3/4 dos peruanos se opunham ao seu impeachment e esperavam que ele completasse seu mandato se concentrando na crise sanitária e na recuperação econômica.

Outras pesquisas apontam que os peruanos veem a corrupção como a grande mazela do país. Mas para muitos a guerra de Vizcarra com o Congresso era parte da solução do problema. Vizcarra tem um perfil centrista e pragmático, tinha apoio dos investidores e não planejava se reeleger. Mas isso não foi suficiente para conter a hostilidade dos parlamentares, muitos acusados pelo próprio Vizcarra de corrupção: 105 votaram por seu impeachment e só 19 contra.

“Há uma febre anticorrupção no Peru desde os anos 1990”, disse o pesquisador para a América Latina da Chatham House, Christopher Sabatini. “A anticorrupção é uma ferramenta mais eficazmente utilizada por populistas e há uma combinação tóxica de um sistema partidário colapsado e a febre da corrupção que agora está mordendo Vizcarra.”

De fato, muitas características da crise política peruana têm estreita semelhança com a crise no Brasil. Dois ex-presidentes estão em prisão domiciliar; um aguarda julgamento; e outro se suicidou para evitar a prisão. Não à toa todos os casos, incluindo o de Vizcarra, estão em alguma medida relacionados a acusações de pagamento de propina pela Odebrecht. Mas lá, como aqui, a justa indignação com a corrupção tem levado a muitas reações abusivas e à desmoralização indiscriminada da política.

Agora, muitos peruanos temem uma escalada do populismo. Com efeito, o presidente do Congresso, Manuel Merino, que assumiu a presidência da República, apoiou diversas iniciativas temerárias, como a permissão de que os peruanos sacassem previamente grandes parcelas de sua aposentadoria; a redução do imposto sobre o valor agregado; e a suspensão do serviço de dívidas dos bancos ou dos pedágios rodoviários. Muitos parlamentares pressionam por alterações constitucionais que lhes permitam concorrer à reeleição.

Mais de 20 pessoas, muitas no Congresso, já se declararam candidatas à presidência. Nenhuma tem apoio partidário forte e dificilmente conseguirá formar bases parlamentares consistentes num Congresso fragmentado, que pode a qualquer momento acionar novamente o botão de ejeção.

Realisticamente, é improvável que o ambiente revolto no Peru seja serenado num futuro próximo. Um novo presidente ou uma nova legislatura dificilmente trarão algo realmente “novo”, antes que o povo peruano consiga se mobilizar por uma longa renovação da credibilidade de suas instituições e da política.