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A desvirtuação das emendas parlamentares

O ‘limbo’ em que estão as emendas de vereadores não reeleitos deixa a comunidade desassistida

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Por Notas & Informações
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As emendas parlamentares, não é de hoje, têm sido constantemente desvirtuadas de seu propósito mais nobre, qual seja, dar um caráter de colaboração entre Poderes à construção do Orçamento público. Previstas na Constituição, as emendas parlamentares são legítimos instrumentos de participação do Poder Legislativo no aprimoramento da proposta orçamentária encaminhada anualmente pelo Poder Executivo, visando à alocação dos recursos públicos em projetos que melhor atendam às necessidades da população.

Em tese, nada há de ilegal ou nem mesmo fisiológico na apresentação de emendas por um parlamentar. Entretanto, na prática, não raro a liberação de emendas ao Orçamento tem sido convertida em moeda de troca para a construção de bases de apoio artificiais ao Poder Executivo ou para enriquecimento ilícito de seus proponentes ou apaniguados. Uma imoral combinação de autoritarismo e patrimonialismo.

Em que pese a natureza impositiva do pagamento das emendas parlamentares no âmbito da União, a anomalia pode ser observada nas três esferas de governo. Em nível federal, o mau uso das emendas parlamentares chegou ao paroxismo de ensejar a construção de um “orçamento secreto”, tal como revelou o Estado em maio deste ano.

Quem mais sofre com a desvirtuação das emendas parlamentares é quem delas mais deveria se beneficiar: a população. Alguns casos na cidade de São Paulo ilustram muito bem como as emendas parlamentares, quando mal ou não empregadas, podem servir a tudo, menos ao interesse público.

O Parque Cora Coralina, na Escola Municipal Desembargador Amorim Lima, na Vila Gomes, zona oeste da capital paulista, precisa de uma reforma para recuperar o solo erodido e tornar o espaço seguro para as crianças, funcionários e professores. Diante da interdição do parque, usado para várias atividades, um grupo de pais de alunos se organizou, preparou um projeto de recuperação durante dois anos e participou de um edital da Prefeitura de São Paulo, batizado Chamada Cívica, para concorrer a recursos indicados por emendas parlamentares. A recuperação do Parque Cora Coralina foi um dos projetos escolhidos entre dezenas de concorrentes, como revelou reportagem do Estado. O grupo de pais conquistou o direito de indicar o destino de uma emenda do então vereador José Police Neto (PSD).

Mas a alegria dos pais dos alunos ao ver seu projeto entre os escolhidos da Chamada Cívica durou pouco. Em 2020, dada a eclosão da pandemia de covid-19, Police Neto retirou as emendas do edital para que a alocação de recursos fosse dedicada ao combate da doença, o que era bastante sensato. Police Neto reapresentou suas emendas, entre as quais a que viabilizaria a recuperação do Parque Cora Coralina, à proposta orçamentária de 2021. O problema é que Police Neto não foi reeleito e as emendas propostas pelo ex-vereador caíram em uma espécie de “limbo”. Até hoje não foram liberadas.

“A comunidade se organizou e venceu um edital. Há, portanto, um compromisso do poder público com aquela organização, e não com o vereador (que apresentou a emenda)”, disse Police Neto ao Estado. Mesmo fora da Câmara Municipal, o ex-vereador informou que tem mantido contato com a Casa Civil da Prefeitura de São Paulo para tentar liberar os recursos.

A Associação Nacional de Prevenção ao Uso e Abuso de Drogas é outra organização da sociedade civil que sofre com o “limbo” das emendas propostas por vereadores que não se reelegeram. A associação contava com R$ 500 mil de uma emenda proposta pelo ex-vereador Masataka Ota (PSB), que não se reelegeu e morreu em fevereiro deste ano.

O “limbo” é uma excrescência jurídica e moral. O Orçamento, ao fim e ao cabo, é uma lei. O vereador que apresentou emendas por fim aprovadas tinha legitimidade para tanto ao tempo da indicação. É dever do Poder Executivo honrar o pagamento. Não é porque um parlamentar perdeu o mandato e, em tese, seu “valor” para o Executivo que suas emendas não devem ser alocadas nos projetos a que se destinam. Os problemas que afligem a comunidade não têm prazo de validade, como um mandato.