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A estabilidade do funcionalismo

É preciso resgatar o sentido da estabilidade do servidor, limitando-a aos casos necessários

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Por Notas & Informações
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As denúncias feitas pelo servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda sobre irregularidades no contrato de aquisição da vacina Covaxin não serviram apenas para questionar a lisura do governo Bolsonaro no trato com o dinheiro público. O escândalo também tem sido usado como argumento para defender o regime de estabilidade do funcionalismo público.

“Se não fosse a estabilidade, ele não estaria aqui sentado com a coragem que ele tem de denunciar isto tudo que está ocorrendo”, disse o deputado Luis Miranda (DEM-DF), irmão de Luis Ricardo Miranda, na CPI da Pandemia. Desde então, algumas corporações de funcionários públicos querem usar o escândalo da Covaxin como pretexto para manter as atuais regras sobre a estabilidade.

No entanto, ao contrário do que pretendem essas corporações, o caso envolvendo a vacina do laboratório indiano Bharat Biotech não é nenhuma demonstração de que as regras atuais de estabilidade do funcionalismo público sejam necessárias ou mesmo adequadas. O debate sobre o regime atual é importante, pois afeta diretamente a capacidade de o poder público cumprir suas funções e prover serviços públicos de qualidade.

A Constituição de 1988 estabeleceu o que se pode chamar de estabilidade indiscriminada. Com redação dada pela Emenda Constitucional (EC) 19/1998, o art. 41 prevê que “são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público”.

Segundo o texto constitucional, não existe estabilidade absoluta. Estabeleceu-se que o servidor estável pode perder o cargo em três hipóteses: sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo com ampla defesa ou procedimento de avaliação periódica de desempenho, “na forma de lei complementar”. Na prática, a estabilidade continua sendo quase absoluta, pois o Congresso ainda não regulamentou a demissão por mau desempenho.

Tem-se, assim, um regime de estabilidade desproporcionalmente amplo e rígido. Nos países desenvolvidos, só alguns postos contam com a prerrogativa, como juízes, soldados, fiscais ou policiais. Na Suécia e na Espanha, por exemplo, apenas 1% dos funcionários trabalha em regime estatutário. Na Grã-Bretanha são 10%, e mesmo assim com estabilidade parcial.

O Estado deve ter um corpo burocrático qualificado, mas isso não significa conceder estabilidade a todos os servidores, como se faz no Brasil. Num regime assim, além de engessar o poder público, a estabilidade se converte numa espécie de privilégio próprio do funcionalismo.

É preciso resgatar o sentido da estabilidade do servidor, limitando-a aos casos necessários. Sua finalidade é proteger determinadas carreiras de pressões indevidas, de forma a assegurar a qualidade e a continuidade do serviço público. Em último termo, a estabilidade protege a coletividade, e não o funcionário que ocupa o posto público.

No entanto, a prerrogativa da estabilidade foi desvirtuada no País, sendo transformada em instrumento de acomodação de interesses políticos e eleitorais ou, em alguns casos, em subterfúgio para encobrir incompetência e desídia.

Em vez de justificar a estabilidade indiscriminada do funcionalismo, o caso da Covaxin mostra a necessidade de que a administração pública, em seus mais diversos âmbitos, disponha de um sistema eficiente de apresentação de denúncias. Todo denunciante deve sentir-se seguro, seja servidor estável, terceirizado ou irmão de parlamentar. Afinal, coibir a propagação do delito e da ineficácia é dever fundamental de qualquer funcionário.

Apesar de sua timidez, afetando apenas os futuros servidores, a reforma administrativa em discussão no Congresso aponta na direção correta em relação à estabilidade, restringindo essa prerrogativa a carreiras típicas de Estado. No entanto, a proposta comete o equívoco de deixar para depois a definição de carreiras típicas, a ser feita por lei complementar. Tão importante como corrigir excessos e desequilíbrios do texto constitucional, é regulamentar o que a Constituição já prevê, como a demissão por mau desempenho.