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A exploração de uma tragédia

Devem contas à Justiça os que se aproveitaram da pandemia política ou financeiramente

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Por Notas&Informações
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Quando depôs na CPI da Pandemia, em maio, o intendente Eduardo Pazuello tentou justificar sua falta de empenho nas negociações com a Pfizer para compra de vacinas contra a covid-19 argumentando que, como ministro da Saúde, era o “dirigente máximo”, o “decisor” dos contratos firmados pela pasta. Portanto, seria uma incumbência do “nível administrativo” negociar com os representantes do laboratório. Arrogante, Pazuello chegou a admoestar o relator da comissão, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), afirmando que alguém na sua posição “já deveria saber” que o ministro não poderia se reunir com empresários. À desídia e à empáfia de Pazuello se somou uma mentira. Não foi a primeira lorota do intendente e, seguramente, não há de ser a última.

Dois meses antes do depoimento à CPI, Pazuello se reuniu no Ministério da Saúde com representantes de uma obscura empresa sediada em Santa Catarina, a World Brands Distribuidora, para negociar a compra de 30 milhões de doses da Coronavac “direto com o governo chinês”. Ou seja, fez exatamente o que disse aos senadores que não poderia fazer em razão do cargo. De acordo com um vídeo revelado pelo jornal Folha de S.Paulo, a reunião entre Pazuello e os representantes da World Brands parece ter sido bastante promissora, haja vista que na ocasião foi assinado um “memorando de entendimentos” para a compra da Coronavac e, com o “compromisso” de Pazuello, a assinatura do contrato não tardaria.

Por mais esdrúxulo que possa parecer, a mentira do intendente à CPI talvez seja o menor dos problemas daquele encontro escabroso. Vejamos.

O que o então ministro da Saúde chamou de “negociação direta com o governo chinês” para comprar a Coronavac na verdade não passava de uma negociação com uma empresa atravessadora registrada em nome de um empresário – Jaime José Tomaselli – que, conforme revelou o Estado, foi condenado em 2014 pela Justiça Federal de Itajaí (SC) por fraudes em processos de importação. Uma pesquisa simples evitaria que Pazuello, se estivesse interessado, abrisse as portas do Ministério da Saúde para uma empresa de má reputação.

Os 30 milhões de doses da Coronavac negociadas por meio da World Brands custariam à União US$ 28 cada dose, quase o triplo do valor cobrado pelo Instituto Butantan (US$ 10), única instituição autorizada pelo laboratório Sinovac a produzir e comercializar a vacina no País. Do ponto de vista criminal, os senadores da CPI da Pandemia precisam investigar a fundo as razões para esta gritante diferença de preço. É lícito inferir que interesses antirrepublicanos estejam por trás da transação. Se quisesse, o governo federal teria todas as condições de negociar a compra dos 30 milhões de doses da Coronavac diretamente com o Butantan, em condições comerciais muito mais favoráveis para a União, vale dizer, para os contribuintes. Some-se a isto a certeza de que o Butantan, instituição idônea que é, entregaria o produto contratado, uma salvaguarda sanitária importantíssima no momento mais crítico da pandemia.

Do ponto de vista político, é evidente que o presidente Jair Bolsonaro pôs os seus interesses eleiçoeiros muito acima da saúde e da vida dos brasileiros. Ou seja, cometeu mais um crime de responsabilidade. Convém lembrar que Pazuello apenas cumpria ordens de Bolsonaro. Não foi sem a anuência do presidente, portanto, que o então ministro se reuniu com os representantes da World Brands para comprar vacinas.

A exploração da tragédia é a principal linha de investigação da CPI da Pandemia. Bolsonaro tentou desmoralizar a Coronavac, sabidamente segura e eficaz contra a covid-19, apenas por se tratar de um imunizante trazido ao País pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que o presidente trata não como adversário político, mas como inimigo figadal. Ao usar a aquisição da Coronavac como instrumento de sua rinha política com Doria, Bolsonaro contribuiu decisivamente para aumentar o número de casos e mortes por covid-19 no País.

Ao final da CPI, espera-se que todos os que se aproveitaram do desastre, política ou financeiramente, sejam levados à Justiça.