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A forja de um estadista

Feliz seria a Nação se, ao menos uma vez, Bolsonaro levasse em conta o interesse público

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Por Notas & Informações
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Nem o mais devoto de seus apoiadores esperava que Jair Bolsonaro se transmutasse em estadista ao envergar a faixa presidencial. As expectativas sempre foram modestas. Feliz seria a Nação se ele apenas deixasse de lado a intolerância e a crispação que marcaram sua trajetória parlamentar para se portar à altura do nobilíssimo encargo de ser o presidente de todos os brasileiros. Mas nem uma pandemia que já matou quase 180 mil de seus concidadãos em nove meses parece capaz de fazer Bolsonaro sobrepor o interesse nacional, por um momento que seja, a seus objetivos particulares.

Enquanto o País, temeroso, assiste ao aumento do número de casos de covid-19 após um período de estabilidade e em 22 dos 27 entes federativos registra-se um aumento na média móvel de mortes diárias, Bolsonaro, como se presidisse um pitoresco país imaginário, afirmou durante um evento no Rio Grande do Sul que aqui “estamos vivendo o finalzinho da pandemia”. E foi além. No obtuso olhar de Bolsonaro, o Brasil foi “um dos países que melhor se saíram” no combate à pandemia no mundo.

Não é por acaso que os três países que lideram o ranking de mortes por covid-19 sejam governados por populistas que sempre negaram a gravidade da doença. Os Estados Unidos contabilizam quase 290 mil mortes. O Brasil está perto de 180 mil óbitos. Na Índia, 141 mil pereceram.

A realidade jamais importou para Bolsonaro, que desde o início desta tragédia ignorou os fatos, as recomendações das autoridades sanitárias e não foi capaz de demonstrar uma nesga de espírito público e compaixão pelos milhões de brasileiros que padeceram da peste. Portanto, não deveria surpreender que o presidente, a seu bel-prazer, determine o momento em que a pandemia chegue ao “finalzinho”. Tudo cabe na realidade fantástica do reino de Bolsonaro.

Mas, se não surpreendem, as declarações do presidente brasileiro ainda são capazes de chocar e de envergonhar os cidadãos que não têm o hábito de brigar com a realidade. Em especial quando contrastadas com a atitude de líderes que se mostram à altura dos desafios que têm pela frente.

Em emocionado discurso no Parlamento alemão, a chanceler Angela Merkel exortou seus compatriotas a intensificar as medidas de isolamento para conter o avanço da covid-19 no país. Na terça-feira passada, a Alemanha registrou 590 mortes em 24 horas, recorde de mortes diárias no país. “Se tivermos muito contato antes do Natal e for nosso último Natal com nossos avós, teremos sido negligentes. Lamento muito (ter de endurecer as medidas de isolamento), mas pagar um preço de 590 mortes diárias, do meu ponto de vista, é algo inaceitável”, disse Merkel. Sob seu governo, a Alemanha foi considerada um exemplo de gestão da crise sanitária.

Enquanto falava, Merkel foi vaiada por parlamentares da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido de extrema direita. As áreas mais afetadas pela segunda onda de covid-19 no país são justamente as governadas pela extrema direita, refratária às recomendações médicas e adepta das teorias conspirativas. É evidente que se pode estabelecer um liame entre uma coisa e outra.

Eventos extraordinários, em geral, revelam estadistas ou ajudam a forjá-los no exercício do cargo. Adenauer reergueu uma Alemanha destroçada. Churchill lutou sozinho durante dramáticas semanas contra o nazismo e, ao fim, prevaleceu. Mandela superou tensões praticamente irreconciliáveis para moldar uma nova África do Sul pós-apartheid. Embora, como já dito, jamais tenha sido esperado que Jair Bolsonaro se transformasse em um estadista, o mínimo que se poderia esperar era que, diante de uma situação-limite, como a pandemia mortal, o presidente brasileiro olhasse com mais compaixão para as aflições da Nação. Não o fez e nada indica que o fará, por incapaz.

Só resta à Nação confiar no espírito público de prefeitos e governadores, em instituições como o Congresso e o STF e as autoridades científicas do País, altamente capacitadas.