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A gritante falta de políticas públicas

Recusa do Ministério da Saúde em elaborar norma para notificar casos confirmados de covid-19 por autoteste obriga a Anvisa a cobrar o óbvio

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Por Notas & Informações
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A decisão da diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de rejeitar o uso do autoteste de covid-19 é mais um capítulo do amadorismo que tem sido regra no enfrentamento da pandemia pelo governo. Romison Rodrigues Mota, diretor do órgão regulador, teve que expressar o óbvio e cobrar do Ministério da Saúde, antes que a venda do produto possa ser liberada, o estabelecimento de uma política pública que defina a forma de notificação dos casos confirmados e a inclusão desses dados no balanço oficial. A pasta terá 15 dias para elaborar essas diretrizes, o que pode ser pouco tempo para uma gestão que há quase dois anos se recusa a liderar uma estratégia nacional de combate ao coronavírus.

Em pleno pico da onda da variante Ômicron, com mais de 200 mil casos diários, a demanda explodiu, as filas nas unidades de saúde são gigantescas e o preço dos testes RT-PCR atingiu R$ 400 nas farmácias e laboratórios. Esse tipo de exame caseiro é vendido a preços bem mais baixos na Europa e nos Estados Unidos. No Reino Unido, o governo envia o produto de forma gratuita aos cidadãos em suas casas.

Quando a imprensa questionou a Anvisa sobre a razão da proibição dos testes por conta própria, no início do mês, o órgão regulador citou os termos de uma resolução que impedia o enquadramento como autoteste de produtos com a finalidade de “testar amostras para a verificação da presença ou exposição a organismos patogênicos ou agentes transmissíveis, incluindo agentes que causam doenças infecciosas passíveis de notificação compulsória”. É evidente que a covid-19 se encaixa nessa descrição.

Essas normas não são nenhum capricho, mesmo porque falhas na execução do autoteste comprometem sua confiabilidade. Ademais, há chance de resultados falso-negativos no início do ciclo da doença. A agência, porém, reconheceu que a vedação poderia ser afastada pela diretoria caso houvesse “políticas públicas e ações estratégicas formalmente instituídas pelo Ministério da Saúde”. Foi exatamente o que foi feito pelos países que autorizaram o produto. “Outros países que adotaram a abordagem de execução de testes in vitro para covid-19 fora do ambiente laboratorial detêm critérios sanitários direcionados a tais situações e estabeleceram políticas públicas na perspectiva do combate à disseminação do coronavírus.”

Para um bom entendedor, bastaria reparar a quantidade de vezes que a Anvisa mencionou o termo “política pública” na nota divulgada no início de janeiro – foram cinco –, mas esse não parece ser o caso do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. No voto aprovado nesta semana, o diretor Romison Rodrigues Mota repetiu as palavras três vezes – e, para facilitar, as negritou. “Ocorre que, como bem apontou a Procuradoria Federal junto à Anvisa quando da análise jurídica da proposta, não houve, por parte do Ministério da Saúde, a formalização da inclusão da autotestagem por usuários leigos como política pública. Tal formalização é condição para que seja afastada a vedação”, cobrou. Dada a agilidade da pasta, é bem possível que a venda do produto somente seja liberada quando a onda da Ômicron estiver no fim.

A despeito de todas as lacunas apontadas pela Anvisa na solicitação de registro apresentada pelo Ministério, Queiroga disse que a posição favorável da pasta acerca do autoteste é “clara, como é tudo aqui no governo do presidente Jair Bolsonaro”. É quase um deboche vindo de uma gestão que compra vacinas infantis para, em seguida, promover a perseguição dos servidores que aprovaram seu uso e alarmar os pais superestimando os riscos do imunizante. Mais de um mês após o suposto ataque hacker que o Ministério da Saúde diz ter sofrido em seu site, o caso não foi esclarecido, ainda há sistemas com registro de instabilidade e a contabilização de notificações atrasadas levará semanas. A opacidade é a regra no governo bolsonarista. A única coisa cristalina é a estratégia de desmonte da máquina administrativa e a negligência com as políticas públicas e, consequentemente, com a população.