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A guerra das águas

Situação mostra que é preciso atribuir maior importância às mudanças climáticas e necessidade de preservação ambiental, temas que atualmente fazem do Brasil o centro das atenções mundiais

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Por Notas & Informações
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Por séculos, a história do Brasil tem sido permeada por lutas sangrentas pela posse da terra. Os conflitos agrários, travados desde os mais remotos rincões do País até grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, ainda produzem suas vítimas diante de um Estado que a tudo vê – ou deveria ver –, mas pouco faz. Além dessa chaga que permanece aberta, outra suja de sangue as águas de mananciais, rios, córregos e igarapés Brasil afora.

O Estado fez um levantamento inédito e revelou que nos últimos cinco anos foram abertos 63 mil Boletins de Ocorrência (BOs) em delegacias de todo o País envolvendo conflitos pelo acesso à água. Os crimes de sangue são corriqueiros nesses registros, como o que vitimou o líder comunitário Haroldo da Silva Betcel, assassinado com um golpe de chave de fenda nas costas em uma disputa entre ribeirinhos e fazendeiros pelo controle do curso do Igarapé Tiningu, que deságua no trecho do Rio Tapajós que banha Santarém, no Pará. A reportagem também foi até regiões de conflitos pelo controle ilegal das águas nos Estados de Amazonas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraíba, Pernambuco e Tocantins, além do Distrito Federal.

A Agência Nacional de Águas (ANA) mapeou 223 “zonas de tensão permanente” pelo controle ilegal das águas em todo o País. Surpreendem o aumento de conflitos dessa natureza – há uma década havia apenas 30 zonas conflagradas – e o total descaso de sucessivos governos em relação a uma questão absolutamente sensível.

Além dos aspectos humanitários e ambientais, a guerra das águas diz respeito à segurança nacional. Se nada for feito pelo poder público, e já, é impensável o patamar que esse conflito pode atingir nos próximos dez anos, quando as mudanças climáticas poderão tornar o acesso à água ainda mais crucial, sobretudo para um país como o Brasil, detentor de 12% de toda a água doce do planeta em suas 12 regiões hidrográficas, como as bacias dos Rios São Francisco, Paraná e Amazonas, a mais extensa do mundo.

O conflito pela água não se restringe às pessoas físicas, o que dá dimensão ainda mais grave à questão. Os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo, são partes em uma ação que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo controle do Rio Paraíba do Sul. A água é tema sensível para os dois Estados, cujas capitais se veem às voltas com riscos de queda no abastecimento. Em São Paulo, o Sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana, opera em alerta desde a crise de 2013 e 2014. No Rio, a situação é ainda mais dramática, pois milhares de cariocas hoje nem sequer têm água limpa para beber.

Como revelou a série de reportagens do Estado, são centenas de “áreas de tensão permanente” envolvendo disputas por água em todo o Brasil. Nessas localidades, é cometida toda sorte de crimes, indo de assassinatos, ameaças e corrupção até a apropriação ilegal de fontes de água que deveriam estar acessíveis a todos os cidadãos, com o devido controle do Estado, é evidente.

A chamada guerra das águas mostra que se deve atribuir a maior importância às mudanças climáticas e à premente necessidade de preservação ambiental, temas que atualmente fazem do Brasil o centro das atenções mundiais. Decerto o aumento da escassez de água como corolário do descaso pelo meio ambiente por setores do governo federal há de agravar as disputas.

Uma das mais contundentes revelações feitas pelo Estado é que, hoje, há vastas porções do território nacional onde a lei simplesmente não vale. O que vale nessas localidades é o mando da parte mais forte da pistolagem. A seguir assim, ou as três esferas de governo, de acordo com as suas competências, se unem a fim de preservar não apenas as águas, mas as vidas de milhares de brasileiros, ou os conflitos envolvendo o controle ilegal do acesso à água recrudescerão a níveis inimagináveis.