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A imprescindível educação cívica

Na falta de uma liderança política capaz de unir em vez de separar, os brasileiros se viram na pandemia em meio a um bate-boca estéril

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Por Notas e Informações
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A macabra contabilidade dos mortos pelo coronavírus e o noticiário cotidiano sobre a míngua de milhões de cidadãos como consequência da pandemia e da atuação errática do governo deveriam bastar para que o País refletisse seriamente sobre como chegamos a essa triste e vergonhosa situação. 

É claro que a dimensão da crise pegou todos de surpresa, aqui e no resto do mundo, mas é fato também que o Brasil foi um dos poucos países que menosprezaram a pandemia até que esta se tornasse o pesadelo que é hoje. O próprio presidente Jair Bolsonaro, como se sabe, continua a fazer pouco da doença, ainda que ele mesmo seja uma de suas vítimas. O fato de que o Brasil não tem ainda um ministro da Saúde efetivo e de que o governo trocou duas vezes o titular da pasta durante a pandemia, por mero capricho do presidente, é reflexo desse comportamento irresponsável. Restou aos Estados e municípios agirem por conta própria, sem a necessária coordenação federal, gerando confusão e em muitos casos agravando a crise.

Mas essa trajetória calamitosa foi construída também, ou talvez principalmente, por uma crise bem mais ampla e longeva do que a da pandemia: a da ignorância cívica.

O Brasil dispõe de todos os instrumentos para o bom funcionamento da democracia. A Constituição estabelece a separação de Poderes e um sistema de freios e contrapesos. Há eleições regulares e liberdade de imprensa, e as instituições são apetrechadas para funcionar conforme o ordenamento constitucional. Contudo, todo esse aparato não tem serventia se os cidadãos dele não participam.

Essa participação obviamente não se esgota com o depósito do voto nas urnas durante as eleições. Muito além disso, é preciso, em meio à natural confusão de interesses, ter a capacidade de encontrar propósitos comuns, objetivo capital da política. É isso o que gera o senso de solidariedade que induz os cidadãos a aceitarem decisões difíceis – como, por exemplo, ficar em casa para enfrentar a pandemia – sem que seja necessário recorrer a medidas autoritárias.

Embora sempre seja eleito por apenas uma parte da população, um governo terá muito mais chances de ser bem-sucedido se liderar esse processo com disposição para ouvir as mais diversas opiniões e se os cidadãos se organizarem para fazer chegar suas demandas ao governante. 

A responsabilidade de governar, portanto, vai muito além da capacidade de administrar os problemas do dia a dia: um bom governante não é aquele que, agindo como um messias iluminado, dita o que acredita ser o melhor para o País, e sim aquele que lidera seus concidadãos na discussão sobre as melhores soluções para as crises e também sobre o futuro. Somente assim as decisões governamentais terão o necessário verniz de legitimidade para serem aceitas pela maioria.

Como parece claro a esta altura, Bolsonaro renunciou a esse papel, crucial numa democracia. Deliberadamente negou-se a buscar o propósito comum, agindo como se governasse apenas para seus eleitores.

Bolsonaro, contudo, é apenas uma consequência da incapacidade de muitos brasileiros de compreender como funciona um governo e o que se deve esperar de um presidente. Aqui prevalece a ideia de que o vencedor leva tudo. Mesmo quem não votou em Bolsonaro parece não saber como explorar os mecanismos da democracia, no seu nível mais básico, para superar esta crise de múltiplas dimensões.

Na falta de uma liderança política capaz de unir em vez de separar, os brasileiros se viram em meio a um bate-boca estéril sobre o que deveria ser prioritário em meio à pandemia – salvar vidas ou preservar empregos. Não há argumentação, apenas gritaria e intransigência, como se fossem pontos de vista inconciliáveis.

Bolsonaro, portanto, é o sintoma de um mal muito maior. Há no País uma enorme carência de educação cívica, que prepare os cidadãos não apenas para entender os limites do poder, o funcionamento das instituições e o espírito da Constituição, mas também para participar do debate político em busca de compatibilidades e de consensos – enfim, do interesse comum. Sem essa educação, será muito mais penoso sair desta ou de qualquer outra crise.