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A indignidade da fome

Um em cada quatro brasileiros vive em insegurança alimentar. Isso deveria tirar o sono de qualquer governante minimamente compassivo

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Por Notas & Informações
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No extenso rol de atribuições de um presidente da República, que vão muito além daquelas descritas formalmente no texto constitucional, nenhuma é mais importante do que dotar o País das condições mínimas para que seus governados tenham uma vida digna. No fim do dia, a missão precípua do chefe do Poder Executivo é essa. Todas as políticas públicas de qualquer governo responsável deveriam ser orientadas primordialmente por esse norte moral.

Mas o direito a uma vida digna tem sido sonegado a milhões de brasileiros. Em pleno século 21, o patrimonialismo, hoje materializado em “rachadinhas” e “orçamentos secretos”, segue como o dínamo de um sistema político que deveria assegurar aquele direito básico, impedindo que o Brasil consiga, enfim, livrar-se dos grilhões do passado. Enquanto isso, a brutal desigualdade entre os cidadãos e uma permanente sensação de injustiça social se fazem sentir por um número cada vez maior de brasileiros.

O que pode ser mais indigno do que a dor da fome? Qualquer governante minimamente compassivo deveria perder o sono sabendo que muitos de seus governados não têm o que comer. Já se noticiou que o presidente Jair Bolsonaro não dorme bem, mas as causas de sua insônia provavelmente são outras. Com um arremedo de programa de transferência de renda, o Auxílio Brasil, Bolsonaro apenas finge que ataca o problema da fome.

Uma recente pesquisa do Datafolha revelou que 23% dos brasileiros vivem em domicílios atendidos pelo programa lançado pelo governo no fim do ano passado como substituto do Bolsa Família, marca fortemente ligada ao PT, e do auxílio emergencial, que socorreu os desvalidos nos momentos mais dramáticos da pandemia de covid-19. O maior número de beneficiários do Auxílio Brasil está concentrado na Região Nordeste. Lá, 37% dos entrevistados pelo instituto de pesquisa disseram pertencer a famílias atendidas pelo programa.

Um dado da pesquisa revela o grau de improviso na concepção do Auxílio Brasil – uma cartada meramente eleitoreira – e a falta de condições estruturais para que os brasileiros mais pobres, de fato, tenham condições de melhorar de vida. Para a grande maioria dos entrevistados (68%), o valor do benefício é insuficiente para a subsistência. Apenas 29% consideram os cerca de R$ 400 suficientes. Entre os que pertencem ao estrato mais pobre da população (com renda mensal familiar de até dois salários mínimos), a insatisfação com o Auxílio Brasil é ainda maior: 71% estão descontentes com o que recebem. E não estão descontentes simplesmente porque querem mais e mais dinheiro do Estado. Estão descontentes porque o valor que recebem é corroído por uma inflação renitente e, de fato, não basta para garantir comida na mesa durante todos os dias do mês.

Segundo o Datafolha, entre os brasileiros mais pobres que recebem o Auxílio Brasil, 35% afirmaram não ter comida suficiente em casa para satisfazer as necessidades da família. Considerando o total da população, são 24% os brasileiros nessa condição de insegurança alimentar – um contingente de cerca de 50 milhões de pessoas. O problema aflige principalmente as famílias da Região Nordeste (32%). Nas Regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte, 23% das famílias se disseram afetadas, e na Região Sul, 18%.

Um programa social tão mal-ajambrado decorre fundamentalmente da má concepção que Bolsonaro faz do que seja governar. O presidente jamais esteve interessado em melhorar a vida de seus governados e entregar a um eventual sucessor um país melhor do que aquele que recebeu. Bolsonaro só tem olhos para o seu projeto de poder e para a proteção dos seus familiares e aliados. Tudo que diz ou faz gira em torno desse desiderato.

Sobre a mesa de trabalho do próximo presidente – que, para o bem do Brasil, não haverá de ser Bolsonaro – estará, entre muitos outros, o grave problema da insegurança alimentar que, hoje, assola um em cada quatro brasileiros. O atual mandatário jamais se esforçou para formular uma política eficaz de transferência de renda. No máximo, buscou emular sua nêmesis, Lula da Silva, na formação de uma legião de cativos de projetos assistencialistas.