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A judicialização da política

Cada vez mais, ela tem sido promovida pelos próprios partidos políticos

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Por Notas&Informações
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É frequente a reclamação de que, no Brasil, o Poder Judiciário interfere demasiadamente em questões políticas, o que levaria a uma redução do papel do Congresso na definição de muitas pautas importantes para o País e para a sociedade. Tal crítica é muitas vezes procedente. Não raro, a Justiça ultrapassa os limites estritos da esfera jurídica.

Mas essa crítica ao Judiciário, como se ele estivesse usurpando um poder que não lhe corresponde, é também muitas vezes injusta. Cada vez mais, a chamada judicialização da política tem sido promovida pelos próprios partidos políticos. Não é que a Justiça esteja ampliando os seus espaços. São as legendas que usam o Judiciário para sua agenda política.

Segundo levantamento do Estado, as maiores derrotas sofridas pelo governo Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) decorreram de ações propostas por partidos políticos. Alguns deles com baixíssima representatividade no Congresso.

Por exemplo, a Rede é a legenda que até agora obteve maior êxito no Supremo contra o Palácio do Planalto. No entanto, sua bancada é composta por uma deputada federal e dois senadores. Em Brasília, o partido fundado por Marina Silva tem mais advogados do que parlamentares, acionando frequentemente a Justiça para promover suas propostas políticas.

Por exemplo, o senador da Rede Randolfe Rodrigues foi o autor da ação na qual um juiz do Amapá decidiu que, em razão dos apagões de energia elétrica, parte da população do Estado teria direito a receber mais duas parcelas do auxílio emergencial. Em outra ação proposta pelo senador, o mesmo juiz determinou o afastamento da diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e dos diretores do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

Essa judicialização da política, promovida por partidos com baixa representatividade no Congresso, é mais um desequilíbrio do sistema partidário. Na prática, legendas nanicas desfrutam de um status jurídico incompatível com sua representação, gerando várias distorções. Por exemplo, partidos obtêm, pela via judicial, um peso na vida política nacional desproporcional ao seu tamanho. Como disse tempos atrás o senador Fernando Bezerra (MDB-PE), “quem não tem voto judicializa”.

A Constituição confere a todos os partidos políticos com representação no Congresso Nacional competência para propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) e Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs). A atual situação, com legendas tentando sistematicamente reverter na Justiça derrotas sofridas no Congresso, evidencia a necessidade de aumentar esses requisitos constitucionais.

A Emenda Constitucional (EC) 97/2017 estabeleceu porcentuais mínimos de representatividade para que as legendas tenham acesso aos recursos do Fundo Partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão. É a chamada cláusula de barreira ou cláusula de desempenho. Para continuar com acesso a recursos do Fundo Partidário, os partidos terão de eleger, nas próximas eleições, ao menos 11 deputados federais (distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação) ou obter no mínimo 2% dos votos válidos (distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação).

Uma mesma cláusula de barreira deveria ser aplicada em relação à competência para propor Adin e ADC. Não faz sentido atribuir a partido nanico, que não tem um mínimo de representação popular, um poder que está relacionado diretamente à representatividade. Caso contrário, toda entidade ou cidadão deveria ter o direito de propor essas ações.

Os parlamentares são eleitos para defender os interesses de seus eleitores no Congresso. O voto não é, portanto, uma procuração judicial para o parlamentar atuar na Justiça em nome da população. A judicialização da política por partidos é uma grave deformação do regime democrático. O poder emana do povo, e não de táticas jurídicas. Que a Justiça não se deixe ser manipulada dessa forma, também porque depois as críticas recaem sobre ela.