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A lei é para todos

Ensinamento de Celso de Mello, em sua última sessão do Supremo, deve servir de reflexão para todo o Poder Judiciário, em suas diversas instâncias

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Por Notas & Informações
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Na última sessão como integrante do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello reiterou o entendimento de que as regras processuais penais devem ser aplicadas integralmente ao presidente da República, sem nenhum tipo de privilégio. O caso julgado refere-se ao recurso do presidente Jair Bolsonaro contra a decisão que negou a possibilidade de prestar depoimento por escrito no Inquérito 4.831, que investiga suposta tentativa de interferência política na Polícia Federal. No seu voto, em que negou provimento ao recurso do presidente, o decano do STF lembrou aspectos fundamentais da República.

“A ideia de República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental: o do primado da igualdade de todos perante as leis do Estado. (...) Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado”, disse Celso de Mello. Para o decano, a lei processual é clara. Na condição de testemunhas, as autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário podem ser ouvidas em local, dia e hora previamente ajustados entre elas e o juiz. No entanto, não existe essa prerrogativa no Código de Processo Penal, quando as autoridades estão na condição de investigadas. No caso, o inquérito investiga a conduta de Jair Bolsonaro.

“O postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminações, impedindo que se estabeleçam tratamentos seletivos em favor de determinadas pessoas e obstando que se imponham restrições gravosas em detrimento de outras, em razão de sua condição social, de nascimento, de parentesco, de gênero, de amizade, de origem étnica, de orientação sexual ou de posição estamental, eis que nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República, sob pena de transgredir-se o valor fundamental que informa a própria configuração da ideia de República, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade”, disse o decano do STF.

O ministro Celso de Mello também lembrou que “a estrita observância da forma processual representa garantia plena de liberdade e de respeito aos direitos e prerrogativas que o ordenamento positivo confere a qualquer pessoa sob persecução penal”. Ou seja, a aplicação da lei no caso concreto, sem inventar uma prerrogativa inexistente na lei, não é um ato de perseguição contra o presidente da República, tampouco representa uma tentativa de restringir seus direitos e garantias como investigado.

“A tutela da liberdade, nesse contexto, representa insuperável limitação constitucional ao poder persecutório do Estado, mesmo porque – ninguém o ignora – o processo penal qualifica-se como instrumento de proteção dos direitos e garantias fundamentais daquele que é submetido, por iniciativa do Estado, a atos de persecução penal, cuja prática somente se legitima dentro de um círculo intransponível e predeterminado pelas restrições fixadas pela própria Constituição da República”, lembrou o ministro Celso de Mello.

Em seu voto, o decano do STF reconheceu que, em anos recentes, houve decisões monocráticas da Justiça autorizando que autoridades, mesmo na condição de investigadas, prestassem depoimento por escrito. A Procuradoria-Geral da República (PGR) alegou que, em razão do princípio da igualdade, o mesmo tratamento deveria ser concedido ao presidente Jair Bolsonaro.

O ministro Celso de Mello lembrou uma realidade fundamental. “O postulado da isonomia visa justamente evitar a concessão de privilégios injustificáveis – e inexistentes em lei – para determinado grupo de pessoas ou para certas autoridades públicas, ainda que se trate do Chefe de Estado”, disse.

Esse ensinamento do ministro Celso de Mello, em sua última sessão do Supremo, deve servir de reflexão para todo o Poder Judiciário, em suas diversas instâncias. Frequentemente, o princípio da igualdade é aplicado de forma distorcida. A indevida concessão de um privilégio num caso torna-se pretexto para repetir e ampliar o erro. O princípio da igualdade vem assegurar direitos iguais, e não ampliar privilégios. O critério é sempre a lei.