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A pandemia deu uma trégua

Desaceleração da taxa de contágio não significa que o vírus deixou de ser uma ameaça mortal

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Por Notas & Informações
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O Imperial College, de Londres, divulgou dados que indicam que a transmissão do novo coronavírus no Brasil desacelerou pela primeira vez desde abril. De acordo com a instituição, referência internacional no estudo da evolução da pandemia de covid-19, a taxa de contágio (Rt) no País está em 0,98. Uma Rt menor do que 1,0 é indicativo de desaceleração de contágio. No caso brasileiro, isso significa que cada 100 pessoas contaminadas hoje contagiam outras 98, que por sua vez transmitem o novo coronavírus para 96, e assim sucessivamente. Até agora, o Chile era o único país da América Latina com Rt menor do que 1,0 (0,85).

Sem dúvida alguma, trata-se de uma ótima notícia, há muito aguardada por milhões de brasileiros. Contudo, a desaceleração do contágio não significa que o vírus deixou de ser uma ameaça à vida ou que a pandemia tenha passado. As palavras têm sentido. Desacelerar é uma coisa, cessar é outra. Há razão para celebrar o mais que bem-vindo refrigério, sobretudo porque ele é resultado do esforço de muitos cidadãos, mas não se pode baixar a guarda. O País saiu da “zona vermelha”, mas se os devidos cuidados deixarem de ser tomados, nada impede um retrocesso (ver o editorial Prudência com a volta às aulas).

Países como a Espanha, a Rússia e a França viveram esse momento de desaceleração dos contágios, mas pouco tempo depois registraram avanço do número de infectados pelo novo coronavírus. O governo brasileiro desperdiçou muitas lições dadas por países que enfrentaram os duros efeitos da pandemia antes do Brasil. Não se deve incorrer no mesmo erro. Mas, desafortunadamente, aqui se travam duas batalhas diárias: uma contra a pandemia e outra contra a campanha de desinformação liderada por ninguém menos que o próprio presidente da República. Todo cuidado é pouco.

Mais uma vez contrariando as pesquisas científicas, Jair Bolsonaro disse a apoiadores na entrada do Palácio da Alvorada que a eficácia do uso de máscaras para evitar a contaminação pelo novo coronavírus é “quase nenhuma”. Não se sabe exatamente onde o presidente encontrou evidências para sustentar sua perigosa afirmação, mas deve ser na mesma realidade paralela em que a cloroquina é capaz de curar a covid-19 e o Brasil é o país que “melhor enfrentou a pandemia”. No mundo real, o Brasil ultrapassou a marca de 110 mil mortes e só perde para os Estados Unidos no ranking macabro da incompetência de líderes políticos para lidar com a maior emergência de saúde pública em um século.

Cada vitória no enfrentamento de uma pandemia exige esforço de muita gente e há de ser comemorada. Mas será um erro fatal tomar cada avanço como um passo definitivo na erradicação da doença. Só haverá segurança definitiva quando a grande maioria da população estiver imunizada, seja por meio natural, seja por vacina.

“Lógico que a notícia é positiva, mas essa desaceleração pode ser apenas uma descida de platô. Precisamos de uma queda sustentada ladeira abaixo (para termos segurança)”, disse ao Estado o chefe do serviço de infectologia da Unesp, Alexandre Naime Barbosa. O alerta do especialista é muito importante. Embora o Brasil esteja experimentando pela primeira vez um decréscimo da taxa de contágio, a média de mortes diária ainda está em patamar muitíssimo elevado, de cerca de 980 óbitos.

É triste constatar que o País poderia ter atingido esse patamar de desaceleração mais cedo – em junho, segundo Paulo Lotufo, epidemiologista da USP – se o Ministério da Saúde tivesse exercido seu papel de coordenar os esforços nacionais de combate à pandemia. Menos casos nesses dois meses e meio significariam menos mortes. Quantas, jamais se saberá. Por outro lado, a situação seria muito pior do que é hoje não fossem o valoroso atendimento prestado pelo SUS e as medidas adotadas por Estados e municípios para conter o avanço da doença.

A pandemia deu uma trégua. Mas nada autoriza relaxar na adoção de medidas simples como o uso de máscaras, a higienização das mãos e o distanciamento social por todos os cidadãos que podem fazê-lo.