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A PEC do Calote e a miséria nacional

O caso da PEC dos Precatórios mostra não apenas a irresponsabilidade crônica do governo Bolsonaro, mas a falta de identidade e caráter da maioria dos partidos

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Por Notas & Informações
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A novela dos precatórios é uma coleção de absurdos. O governo Bolsonaro pretende não honrar em 2022 suas dívidas reconhecidas pela Justiça. Como esse calote fere a ordem jurídica, o Executivo federal apresentou ao Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 23/21, que limita unilateralmente o valor das despesas anuais com os precatórios, modifica a forma de correção dos juros dessas dívidas e ainda altera o teto de gastos. Ou seja, numa só tacada, o governo dito liberal deseja constitucionalizar o calote e driblar a responsabilidade fiscal.

A manobra encontrou resistência. Não é nada republicano que o Executivo ignore as dívidas reconhecidas pelo Judiciário, pagando apenas o que bem entender. Na tentativa de superar essas dificuldades, o governo Bolsonaro atribuiu uma suposta conotação social à PEC do Calote. A mudança das regras constitucionais seria condição para os programas sociais de 2022.

Acrescia-se, assim, novo absurdo: sem cumprir o dever de casa, o governo recorre a um argumento sabidamente incorreto. Tivesse estudado o tema com seriedade, o governo Bolsonaro saberia que, para ter programa de transferência de renda em 2022, não é preciso dar calote em credor, tampouco desrespeitar o teto de gastos. A PEC dos Precatórios é uma escolha do governo federal pela irresponsabilidade.

Agora, há um novo capítulo dessa história. Para aprovar a PEC 23/21, o governo Bolsonaro intensificou o uso das chamadas emendas de relator-geral, que servem para o repasse não transparente de verbas públicas para finalidades indicadas pelos parlamentares. É o chamado orçamento secreto, que encobriu, por exemplo, o escândalo da compra de tratores sem os devidos controles.

Como o Estado revelou, o governo Bolsonaro, desde a chegada do texto da PEC 23/21 ao plenário da Câmara, empenhou R$ 1,2 bilhão das chamadas emendas de relator-geral. Com isso, outubro foi o mês de maior valor de emendas liberadas, alcançando a cifra de R$ 2,95 bilhões.

Nessa história, a cronologia das emendas é importante. No dia 27 de outubro (quarta-feira), houve uma tentativa frustrada de votar a PEC dos Precatórios no plenário da Câmara. Nos dois dias seguintes, 28 e 29, foi liberada a maior parte das emendas: R$ 909 milhões para as emendas de relator-geral. Na semana seguinte, no dia 4 de novembro, a Câmara aprovou, por 312 votos contra 144, o texto-base da proposta. Para concluir a votação da matéria em primeiro turno, falta ainda analisar os destaques apresentados pelos partidos.

Segundo relatos colhidos pelo Estado, o valor oferecido por interlocutores do Palácio do Planalto pelo voto de cada parlamentar foi de até R$ 15 milhões. A coordenação das negociações coube ao presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL). Também houve, nos dias prévios à votação da PEC 23/21, aumento do ritmo do pagamento de outras emendas, como as individuais e de bancadas.

Nessa história, não fica mal apenas o presidente Bolsonaro, que, para dar o calote no País, não tem pudores de recorrer às práticas mais daninhas na relação entre Executivo e Legislativo. Houve muitos parlamentares que, de forma absolutamente incompreensível, apoiaram a PEC dos Precatórios. Por exemplo, deputados do PSDB, PDT, MDB e Podemos deram aval à irresponsabilidade bolsonarista de mudar a Constituição para não pagar aos credores e ainda obter autorização para ignorar a principal âncora fiscal do País. A votação da PEC 23/21, no dia 4 de novembro, confirma a situação lamentável da maioria dos partidos, sem identidade, sem conteúdo programático e – não é figura de linguagem – sem caráter.

A PEC dos Precatórios mostra, portanto, não apenas um governo incoerente com suas promessas de campanha. Sem compromisso fiscal e sem transparência, Jair Bolsonaro faz as piores manobras da crônica política. Revela também a existência de parlamentares mais afeitos a emendas que a princípios cívicos. Para que haja uma operação de compra, alguém tem de estar disposto a vender. No caso, disposto a vender-se.