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A política não é dispensável

A Constituição define que filiação partidária é uma das condições de elegibilidade

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Por Notas & Informações
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Na segunda-feira passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou audiência pública sobre a possibilidade da adoção de candidaturas avulsas, sem filiação partidária. A audiência foi convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator de uma ação questionando a obrigatoriedade da filiação tal como prevista na Constituição de 1988. Ao justificar a medida, o ministro Barroso explicou que a audiência pública seria uma oportunidade para discutir os aspectos positivos e negativos das candidaturas avulsas, as eventuais dificuldades para sua implantação e os efeitos de tal permissão sobre o sistema partidário e o regime democrático.

É absolutamente fora de propósito o STF convocar audiência pública para discutir se a Constituição está certa ou errada. Eventual discussão sobre essa matéria cabe ao Congresso. O Supremo é o guardião da Constituição, que define, com clareza meridiana, a filiação partidária entre as condições de elegibilidade. Ao tratar dos direitos políticos, o art. 14, § 3.º da Carta Magna estabelece que “são condições de elegibilidade, na forma da lei, a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição, a filiação partidária e a idade mínima”, específica para cada cargo. Assim, seria preciso mudar o texto constitucional para que seja juridicamente viável uma candidatura sem vínculo partidário – e quem discute e vota Proposta de Emenda Constitucional (PEC) é o Poder Legislativo, não o Judiciário.

A falta de competência do STF para modificar a Constituição deveria ser, portanto, motivo suficiente para a rejeição sumária da ação questionando a necessidade de filiação partidária. Isso fica ainda mais claro tendo em vista que o Supremo se encontra assoberbado de trabalho, com muitas ações relevantes à espera de julgamento. É um disparate gastar tempo com processos que afrontam explicitamente a Constituição.

O questionamento sobre a filiação partidária revela mais do que uma indevida transigência com o texto constitucional. Ele manifesta incompreensão a respeito da democracia representativa, cujo bom funcionamento depende necessariamente dos partidos políticos. Não há democracia representativa sem partidos políticos. E isso é assim porque a política raramente é obra meramente individual. Todo o poder emana do povo e entre as muitas consequências desse princípio fundamental está o fato de que o exercício do poder tem sempre uma dimensão coletiva, envolvendo interlocução, discussão, convencimento, negociação, compartilhamento de ideias, propostas e sonhos. Todas essas etapas da política envolvem diretamente os partidos.

Ao exigir filiação partidária, a Constituição faz depender o exercício do direito de se candidatar de uma aceitação prévia de seus pares. Ou seja, ela afirma a dimensão coletiva desse direito. A exigência de vínculo partidário não é, portanto, mero trâmite burocrático. É o reconhecimento de que os partidos políticos são instituições fundamentais para a organização de um Estado Democrático de Direito. Eles são etapa essencial para o debate, o aprimoramento e a difusão das ideias e propostas políticas.

Reafirmar o papel fundamental dos partidos não significa fechar os olhos à profunda crise do sistema partidário. Infelizmente, as legendas têm sido muitas vezes meras siglas, sem ideário definido e consistência ideológica, cumprindo a inglória tarefa de defender apenas o interesse de seus caciques. Basta ver, por exemplo, a baixíssima renovação das lideranças partidárias.

Gravíssima, a crise dos partidos afeta o funcionamento do regime democrático. Precisamente por isso, desprestigiar ainda mais as legendas, tratando-as como meras estruturas burocráticas, apenas agravaria a crise da representação. A rigor, negar os partidos é negar a política, com todo o caráter autoritário e voluntarista que isso implica. Ainda que tal medida possa agradar a alguns, ela é absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito. Não combina, portanto, com o Supremo tão malfadada iniciativa.