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A sucessão na Suprema Corte

Mudança no seu perfil doutrinário pode afetar a vida social, econômica e política americana

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Por Notas & Informações
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Com a indicação pelo presidente Donald Trump da juíza conservadora Amy Barrett para ocupar na Suprema Corte a vaga aberta com a morte da juíza liberal Ruth Ginsburg, a menos de cinco semanas da eleição presidencial, os meios jurídicos e políticos americanos entraram em estado de alerta. E com razão, pois Trump deixou claro que não perderia a oportunidade de escolher um nome ultraconservador, o que pode ajudá-lo caso a eleição venha a ser decidida na Justiça, como ele ameaça.

A maioria absoluta na Suprema Corte era uma antiga aspiração dos republicanos mais conservadores. Até agora, a Corte estava dividida, com cinco ministros conservadores, indicados por presidentes republicanos, e quatro liberais, indicados por presidentes democratas. Apesar da maioria de um voto, o presidente, o juiz conservador John Roberts, acompanhou algumas vezes os ministros liberais, assegurando equilíbrio. Se Barrett for aprovada pelo Senado, a diferença será de 6 conservadores para 3 liberais, o que permitirá à Corte derrubar direitos conquistados há anos e promover mudanças constitucionais em matéria de costumes, como controle de armas e aborto.

É de esperar, portanto, que uma hegemonia conservadora na Suprema Corte cause apreensões. Mudanças constitucionais abruptas impostas por decisão judicial podem afetar atos jurídicos firmados segundo a ordem legal em vigor há tempos. Esses atos envolvem costumes e direitos adquiridos e balizam decisões econômicas. A derrubada de direitos e uma alteração radical no direito constitucional americano podem acarretar assim uma enxurrada de ações judiciais, pois trarão incerteza para quem respeitou todos os requisitos formais dentro dos marcos legais então vigentes. Numa sólida economia de mercado, como a americana, a insegurança jurídica prejudica fortemente o ambiente para negócios.

Além disso, uma derrubada judicial de direitos aprovados pelo Congresso pode resultar em sucessivas crises políticas. Como a sociedade americana é essencialmente plural, a hegemonia conservadora na Suprema Corte gerará tensões sociais. Historicamente, apesar das divergências doutrinárias entre seus membros, eles jamais esticaram a corda. Sob a presidência de Earl Warren, entre 1953 e 1969, um dos mais influentes magistrados liberais americanos, a Corte tomou decisões progressistas, envolvendo direitos civis e questões raciais. Ao suceder-lhe, o conservador Warren Burger teve apoio de seus pares para rever algumas delas. Mas teve o bom senso de não mudá-las radicalmente, preservando o equilíbrio da ordem legal numa nação diversificada e com estrutura federativa.

É esse equilíbrio que pode ser alterado com a indicação de Barrett, na reta final da disputa presidencial. Em 2016, os republicanos se opuseram a um nome indicado para a Suprema Corte pelo presidente democrata Barack Obama. A justificativa foi que aquele era um ano eleitoral e o novo ministro deveria ser nomeado pelo vencedor do pleito. Mas Trump, que nas pesquisas está atrás de seu adversário, ignorou o precedente aberto por seu partido.

Toda ordem constitucional tem de combinar estabilidade e flexibilidade – e uma corte suprema é decisiva para que isso ocorra. Se privilegiar a estabilidade, essa ordem tende a perder eficácia, desconectando-se da realidade. Se for muito flexível, não conseguirá assegurar um mínimo constitucional comum. Dependendo do modo como Barrett vier a se comportar, essa tensão entre estabilidade e flexibilidade pode ser rompida na maior democracia do mundo.

A exemplo de Trump, a quem admira e imita, Bolsonaro também age de forma impulsiva e muitas vezes insensata. No caso da aposentadoria de Celso de Mello, por exemplo, esquecendo-se de que ministros de uma corte constitucional juram defender a Constituição, sobrepondo-se a suas ideias e crenças, ele afirmou na semana passada que indicará para o Supremo Tribunal Federal um ministro com quem possa “tomar cerveja no fim de semana”. Mostra, assim, seu desprezo pela Constituição, que exige que o nome a ser indicado tenha isenção, reputação ilibada e conhecimento jurídico.