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A sucessão no Supremo

A escolha do próximo ministro se converteu numa sucessão patética de cenas de vassalagem

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Por Notas & Informações
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Se no passado as vagas que se abriam no Supremo Tribunal Federal (STF) davam ensejo a uma ampla discussão sobre o perfil desejado para seu sucessor, em termos de conhecimento jurídico e orientação política e doutrinária, agora o debate infelizmente gira em torno de nomes que possam favorecer o presidente da República e sua família, blindando-os judicialmente. 

Exemplo de como as coisas eram pode ser visto numa carta pessoal que o então ministro Paulo Brossard enviou em 30 de dezembro de 1992 ao presidente Itamar Franco, logo após ele ter assumido o Palácio do Planalto. Na carta, com cinco parágrafos, Brossard informa que teria de se afastar do STF em 1994, quando atingiria a idade máxima de permanência no serviço público. Também afirma que Itamar disporia, assim, de tempo para refletir sobre o nome mais adequado para substituí-lo, levando em conta critérios como sabedoria, reputação ilibada, isenção e patriotismo. 

Segundo Brossard, a escolha de um novo nome para o STF é um ato delicado e até “sagrado”, dada a importância da Corte para a efetividade da democracia. O argumento mais importante está no terceiro parágrafo. “Pode ocorrer que surjam candidatos, mas é preciso não esquecer que ninguém, por mais eminente que seja, tem direito de postular o cargo, que não se pleiteia, e aquele que o fizer, a ele se descredencia; seu provimento é entregue à integridade, descortino e senso de responsabilidade do Presidente da República, sujeito apenas ao exame do Senado Federal”. 

Quase três décadas depois, ao que o País vem assistindo em decorrência da aposentadoria do decano do STF, ministro Celso de Mello, é o oposto do que Brossard recomendava. Há meses, Bolsonaro, desprezando o fato de que o Estado brasileiro é laico, afirmou que escolheria para a primeira vaga que se abrisse na Corte um ministro “terrivelmente evangélico”. Na semana passada, deixando de lado a “integridade, o descortino e o senso de responsabilidade” de que falava Brossard, Bolsonaro disse que escolherá para o STF alguém com quem possa “tomar cerveja no fim de semana”. 

Entre uma fala e outra, o presidente concedeu audiências pedidas por presidentes de corporações jurídicas com o objetivo de persuadi-lo a escolher candidatos que não atendem às exigências de notório saber jurídico e reputação ilibada, mas compartilham afinidades ideológicas e religiosas com o chefe da Nação. Ao mesmo tempo, para avaliar a reação dos meios políticos, o Planalto vazou nomes de assessores próximos do presidente – todos sem envergadura jurídica. 

Além disso, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), acusado pelo Ministério Público de relacionamentos espúrios com milicianos e de envolvimento no esquema da “rachadinha”, quando era deputado estadual, sugeriu o nome de um juiz que fora seu professor e tem sua “confiança”. Para coroar, nos últimos dias apareceu a informação de que Bolsonaro cogita fazer uma “operação casada”. Ele indicaria para o STF um ministro de confiança do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, que durante o plantão de julho concedeu prisão domiciliar ao PM aposentado Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro na Assembleia fluminense. Com isso, também poderia indicar outro nome de confiança para o STJ – a Corte que julgará as ações de Flávio Bolsonaro. Dias depois, o Planalto anunciou que Bolsonaro teria informado a ministros do STF a disposição de indicar o desembargador Kassio Nunes, do TRF 1, sugerido por membros do Centrão.

Em sua época, Brossard – político, jurista e juiz íntegro e respeitado – deu uma lição de civilidade e democracia. Ao explorar a ambição de aspirantes com poucas credenciais e ao tentar indicar um nome com quem possa “tomar cerveja”, Bolsonaro converteu a escolha do novo ministro do STF numa sucessão de cenas de vassalagem e de maquiavelismo de subúrbio. A esse ponto o nível da vida política brasileira caiu.