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A surpreendente resistência ucraniana

O regime está longe de ser um exemplo democrático, mas merece todo o apoio contra um invasor

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Por Notas & Informações
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Nos conflitos humanos, se houvesse um lado absolutamente mau e um lado absolutamente bom, este lado não seria humano, mas divino.

Nas relações de séculos entre russos e ucranianos certamente não há um lado bom e um mau, nem nas décadas de disputa entre a Otan e o Pacto de Varsóvia – hoje reduzido e rebatizado como Tratado de Tashkent. Mas na guerra de Vladimir Putin há um lado certo e um errado, um criminoso e uma vítima.

A Ucrânia não buscou expandir seu território, Putin busca. A Ucrânia não está bombardeando cidades, Putin está. A Ucrânia não está massacrando civis, Putin está. A Ucrânia não está ameaçando com armas químicas e nucleares, Putin está. A guerra de agressão de Putin é injusta. A guerra de defesa da Ucrânia é justa.

Contudo, enquadrar simplesmente a guerra como entre a “autocracia” e a “democracia” seria enganoso. O lado maléfico desse engano são as manifestações populares de xenofobia contra os russos e sua cultura. O lado ingênuo é a idealização do regime ucraniano. 

No Índice da Democracia do Instituto V-DEM, a Ucrânia está na 99.ª posição. O da Economist Intelligence Unit e o da Freedom House nem sequer a consideram uma democracia, mas um “regime híbrido”. Desde que o levante de Maidan depôs o governo pró-russo, em 2014, o regime cometeu abusos e foi estrategicamente imprudente em seus avanços rumo à Otan. A corrupção é endêmica, e ataques a jornalistas, ativistas e minorias são frequentes.

Nada disso legitima as hipérboles da propaganda russa (“nazismo”, “genocídio”), muito menos a invasão. As eleições são razoavelmente limpas e houve reformas significativas. O povo ucraniano vinha dando mostras crescentes de anseio por instituições liberais e democráticas. Agora, luta pela sobrevivência.

A Ucrânia surpreendeu o mundo, a começar por Putin, por sua resistência. Mais ou menos democrático, o regime precisa ser auxiliado com sanções e armas para defender a integridade territorial do país e buscar uma paz condizente com sua soberania.

Isso envolverá inclusive a cooperação com ditaduras. Como disse o articulista Janan Ganesh: “O inimigo não é uma abstração chamada ‘autocracia’. É um agressor específico em um conflito territorial definido. Induzir uma mudança em seu comportamento é possível, mas provavelmente exigirá a cooperação da Arábia Saudita, rica em petróleo, da estrategicamente localizada Turquia e de um estado chinês em condições de acolchoar a Rússia contra as sanções”. 

Dizer que a guerra é inequivocamente entre a “democracia” e a “autocracia” seria ingênuo. Negá-lo completamente seria cínico. O certo é que, para a Ucrânia, é uma guerra em defesa da soberania e existência de seu povo. E há um combate, sim, das forças democráticas – as do mundo, as da Ucrânia sobretudo, mas também as de parte da sociedade russa – contra um tirano. Sob esse tirano, a Rússia é cada dia mais autocrática. Se a Ucrânia será mais democrática, o futuro dirá – agora a luta é pela sobrevivência. Mas desde já os ucranianos estão dando um exemplo de patriotismo e coragem que deveria inspirar o mundo – inclusive, e sobretudo, os russos.