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A tenacidade da imprensa

O jornalismo independente não se vergou quando foi atacado por forças muito mais poderosas. Não há de ser agora

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Por Notas & Informações
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Dirigindo-se a “essa imprensa” que trabalhava na cobertura da troca de comando da Operação Acolhida, no Palácio do Planalto, na quinta-feira passada, um exaltado presidente Jair Bolsonaro disse que os jornalistas deveriam “tomar vergonha na cara e deixar o nosso governo em paz”. Só assim, livre dessa chatice que é estar sob escrutínio do distinto público por intermédio de uma imprensa profissional e independente, o presidente poderá “levar harmonia ao nosso povo”.

Em primeiro lugar, harmonia e Jair Bolsonaro são noções antitéticas, basta olhar em retrospecto não só para o seu primeiro ano de governo, mas para as quase três décadas de vida parlamentar do atual chefe do Poder Executivo. Se Bolsonaro não está conseguindo “levar harmonia ao nosso povo”, definitivamente, não é por culpa da imprensa, e sim porque avença nunca foi do seu feitio. Muito ao contrário. A trajetória de sua ascensão política está indelevelmente marcada pelo confronto, nem sempre civilizado e democrático, contra tudo e todos que lhe são opostos.

Com tantos anos de vida pública, não é crível que o presidente da República desconheça que a imprensa profissional e independente, livre de quaisquer intimidações censórias, sejam de natureza física, moral ou econômica, é um dos sustentáculos da democracia. Seus reiterados ataques contra jornalistas e veículos de comunicação que não se submetem à reles bajulação do governo revelam que, como a concórdia, a democracia não goza de seu profundo apreço.

No ano passado, houve 208 ataques a jornalistas e veículos de comunicação no País, de acordo com o relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) divulgado no último dia 16. O número é 54% maior do que o registrado em 2018. Não é coincidência que no curso do primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro tenha se dado esse crescimento expressivo dos ataques à imprensa. Ainda de acordo com o relatório da Fenaj, o presidente foi diretamente responsável por nada menos do que 121 dos 208 ataques (58%). Ou seja, da elevada posição que ocupa na hierarquia da República, Bolsonaro não apenas estimula como pratica com impressionante regularidade a desqualificação da imprensa e dos jornalistas que ousam publicar aquilo que lhe desagrada.

A maioria dos ataques de Jair Bolsonaro contra jornalistas e veículos de comunicação foi categorizada pela Fenaj como “descredibilização da imprensa”. A entidade teve de criar a categoria para o relatório de 2020, tamanho o número de casos. “Em 2019, a modalidade (descredibilização da imprensa) tornou-se a principal forma de ameaça à liberdade de imprensa no Brasil e foi incluída no relatório em função da institucionalização dessa prática”, esclarece a Federação.

A Fenaj contabilizou no ano passado, além da participação do presidente da República, 2 homicídios, 28 casos de ameaça e intimidação, 15 casos de agressões físicas, 10 casos de censura ou impedimento do exercício regular da profissão, 5 ocorrências de cerceamento à liberdade de imprensa por ações judiciais, 2 casos de injúria racial e 2 ações de violência contra organizações sindicais de jornalistas. Confirmando tendência dos últimos seis anos, a maioria dos ataques à imprensa ocorreu na Região Sudeste (47% dos casos).

Jamais houve momento tranquilo para o livre exercício do bom jornalismo. Fazer jornalismo devotado aos fatos, com coragem e independência, implica desagradar, cedo ou tarde, àqueles que detêm poder, público ou privado, legal ou ilegal. É da essência do jornalismo profissional não se intimidar pelo poder quando este se interpõe entre as informações de interesse público e a sociedade.

O presidente Jair Bolsonaro não vai mudar o seu comportamento em relação à imprensa. Ele é o que é. A boa notícia é que a imprensa também é o que é e tampouco mudará o seu comportamento em relação à cobertura do governo de turno e dos que lhe sobrevierem. O jornalismo independente não se vergou quando atacado por forças muito mais poderosas do que as que ora se voltam contra ele. Não há de ser agora.