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Aceno à moderação

É difícil imaginar um Taleban moderado; resta torcer para que não governe pela violência

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Por Notas & Informações
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É muito difícil imaginar um Taleban moderado. O passado de reiteradas violações dos direitos humanos, sobretudo as atrocidades cometidas contra mulheres e meninas afegãs, condena a milícia de radicais islâmicos do Afeganistão. Portanto, o enorme esforço de relações públicas do Taleban após a tomada de Cabul, no domingo passado, deve ser recebido com desconfiança. “Os talebans serão julgados por suas ações, e não por suas palavras”, afirmou o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.

No dia 17 passado, representantes do grupo deram entrevista coletiva, divulgaram diversas mensagens pelo Twitter e foram à rede de TV BBC com o objetivo de transmitir ao mundo a imagem de um “novo” Taleban, uma espécie de versão “evoluída” daquele Taleban que entre 1996 e 2001 governou o Afeganistão se refestelando em sangue. “Dê-nos tempo”, pediu o porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid, durante a coletiva de imprensa. Em tom conciliador, Mujahid afirmou que o povo afegão “não tem com o que se preocupar”, que propriedades serão “respeitadas” e, principalmente, a integridade física dos afegãos que colaboraram com as forças de ocupação lideradas pelos Estados Unidos estará assegura. Anunciou-se uma espécie de anistia.

O porta-voz do grupo disse ainda que as mulheres estarão a salvo de violência e “nenhum preconceito contra elas será permitido”, pois, prosseguiu Mujahid, “os valores islâmicos são a nossa estrutura”. Aqui mora o perigo. Este “novo” Taleban anunciou que integrará as mulheres à sociedade, permitindo que elas estudem e trabalhem, “mas sempre dentro dos limites da lei islâmica”. Isto valerá para os jornalistas, que terão “permissão” para “criticar e apontar erros” do novo governo, contudo, também dentro das balizas que são definidas pelo próprio Taleban.

O grupo é mundialmente conhecido pela interpretação extremada que faz do Alcorão. Ao fim e ao cabo, a garantia das liberdades mais comezinhas dos cidadãos afegãos estará sempre condicionada a esta exegese muito particular do texto sagrado do islã.

Por outro lado, o que resta ao chamado mundo civilizado a não ser torcer para que este aceno à moderação, de fato, seja acompanhado de ações que tragam ao menos um fiapo de esperança para um povo alquebrado por séculos de guerras e ocupações estrangeiras? A julgar pelas recentes declarações do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não se cogita voltar atrás da decisão de retirar os soldados americanos do Afeganistão após quase duas décadas de ocupação militar. O que significa dizer que, para o bem ou para o mal, os afegãos terão de encontrar alguma forma de reconstruir o país por si mesmos.

Por ora, as promessas do Taleban não foram suficientes para aplacar a angústia de milhões de afegãos. Ondas migratórias já são dadas como certas por autoridades da União Europeia, o que poderá desencadear uma crise humanitária tão ou mais dramática do que a de 2014-2015, quando milhares de refugiados chegaram ao continente europeu em condições subumanas tentando escapar de conflitos no norte da África e no Oriente Médio, em especial da guerra civil na Síria.

Em muitas regiões do Afeganistão, sobretudo em cidades do interior, mulheres deixaram de realizar suas atividades laborais ou acadêmicas e até mesmo evitam circular nas ruas. A situação é especialmente preocupante para as muitas viúvas do país, que nem sequer podem ir ao mercado comprar alimentos por não terem a companhia de um homem, como manda o Taleban.

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, disse estar “particularmente preocupado” com a situação das mulheres afegãs após ter recebido relatos “assustadores” de violências praticadas pelo Taleban no caminho até Cabul. Guterres exortou as lideranças do grupo a respeitar os direitos humanos.

É o que resta esperar agora, que o Taleban cumpra a promessa de não governar pela violência desmedida, como outrora. É ocioso esperar que um país islâmico se converta em uma democracia nos moldes das democracias ocidentais.