Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Alternância no poder e democracia

Contestar o resultado de eleição cuja lisura é inquestionável é coisa de autocrata

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Por Notas & Informações
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É da natureza humana o apego ao poder uma vez conquistado. A fim de evitar que esta perniciosa tendência contaminasse as instituições políticas, visando a submetê-las às vontades de um soberano, sociedades que lutaram pela liberdade ao longo da História conceberam uma série de mecanismos que permitissem a alternância entre os detentores do poder de tempos em tempos.

No século 18, Montesquieu, expressão mestre do constitucionalismo moderno, ensinou que, “para que o abuso de poder seja impossível, é necessário que, pela ordem das coisas, o poder faça o poder parar”. Décadas mais tarde, James Madison sintetizaria o pensamento do iluminista francês ao escrever que “é preciso fazer com que a ambição seja neutralizada pela ambição” durante os arranjos para a elaboração da Constituição dos Estados Unidos.

Ao contrário da aristocracia, “o governo dos melhores”, a democracia admite governantes imperfeitos, mas não admite senhores, não admite autocratas. A alternância de poder é, pois, atributo primordial da democracia. Não se pode falar de uma coisa sem a outra. Uma democracia só está amadurecida quando a miríade de interesses coletivos em jogo em dada sociedade é mediada civilizadamente no âmbito das disputas políticas, vale dizer, na luta por espaços de representação na Presidência e no Parlamento regida por normas que todos aceitam como justas e às quais todos se submetem. Isto implica que sejam dadas a cada um daqueles diferentes grupos de interesse as condições – não só meramente formais – para vencer uma eleição e chegar ao poder se assim for a vontade dos eleitores.

Para fluir perfeitamente, no entanto, este pacto social há de ser uma via de mão dupla. Se, por um lado, forças políticas alternativas ao governo de turno devem ter a chance de substituí-lo por meio do voto, por outro, o grupo político ora detentor do poder precisa reconhecer o resultado do pleito em caso de eventual derrota. Caso contrário, será um traidor do mesmo pacto que propiciou sua ascensão ao poder e revelará de forma cabal, por vezes trágica, sua vocação liberticida.

Até pouco tempo atrás, a contestação de resultados de eleições cuja lisura foi inquestionável era um problema restrito às republiquetas. Não mais. Nas duas maiores democracias das Américas, Estados Unidos e Brasil, pôr em xeque a segurança do processo eleitoral se converteu em uma das táticas para manutenção de poder engendradas por populistas como Donald Trump e Jair Bolsonaro, não raro recorrendo à desinformação e às teorias conspirativas.

A bem da verdade, os brasileiros tiveram um aperitivo deste ardil na eleição presidencial de 2014, quando o então candidato Aécio Neves (PSDB) não reconheceu a vitória de Dilma Rousseff (PT), sob a alegação de “desconfianças propagadas nas redes sociais que colocaram em dúvida desde a votação até a totalização dos votos” dados à petista. Um despautério que, até Bolsonaro, parecia ter sido superado.

Apenas dois meses após tomar posse, convém lembrar, Bolsonaro subiu um degrau em sua escadaria de infâmias ao afirmar ter sido vítima de “fraude” em um pleito do qual saíra vencedor. Até hoje repete a cantilena de que teria vencido a disputa no primeiro turno. E até hoje não apresentou uma evidência sequer, por mais tênue que fosse, que corrobore sua perigosa alegação. “Se o presidente da República tiver provas (de fraude na eleição), tem o dever cívico de entregá-la ao Tribunal Superior Eleitoral. Estou com as portas abertas. O resto é retórica política, são palavras que o vento leva”, disse há poucos dias o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso.

No caso americano, o vigor das instituições democráticas foi submetido a um teste de estresse antes inimaginável, mas, ao final, prevaleceram as leis e a vontade dos eleitores. O Brasil tem encontro marcado com esta agitação no ano que vem, caso Bolsonaro não seja reeleito. O que determinará se o movimento será choro de perdedor ou, de fato, uma crise institucional será a força das instituições pátrias.