Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Apologia do abuso de poder

Ao ignorar o conteúdo do projeto de lei aprovado e tecer críticas infundadas, o que se vê é a tentativa de manter a impunidade do abuso de autoridade

Exclusivo para assinantes
Por Notas e Informações
Atualização:
3 min de leitura

Desde que o Congresso aprovou o projeto de lei que criminaliza o abuso de autoridade, tem havido uma saraivada de críticas afirmando que a nova lei seria revanchista, desequilibrada e perigosa para o bom funcionamento da Justiça. Tal oposição não apenas ignora o conteúdo do projeto de lei. As críticas ignoram o fato insofismável de que a nova lei tem uma característica única. É simplesmente impossível que ela seja interpretada enviesadamente, de forma a dificultar a ação dos juízes e procuradores, pela simples razão de que os intérpretes da nova lei serão os próprios juízes e os membros do Ministério Público.

Não faz sentido a alegação de que os crimes previstos na nova lei seriam muito abertos, dando margem a uma criminalização da atividade judicial. Em comparação com a legislação penal vigente, o projeto de lei do abuso de autoridade é bastante preciso. Houve muitas críticas, por exemplo, ao primeiro crime previsto na lei - “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais” - como se fosse impossível detectar as situações de “manifesta desconformidade”.

Vale a pena refletir sobre tal argumentação. Quando se critica esse tipo penal - que é uma elementar medida de respeito à liberdade de todos os cidadãos, consequência direta de um Estado Democrático de Direito que zela pelas garantias individuais -, a rigor o que se está postulando é que nunca se poderia, com um mínimo de certeza, dizer que numa determinada situação o juiz não tem poderes para decretar a prisão de alguém. Tal crítica é uma insidiosa apologia do abuso de poder, ao afirmar que nunca se poderia detectar, com um mínimo de segurança, um caso de abuso.

Ou seja, o que essas críticas ao projeto de lei afirmam é que nunca uma prisão poderia ser classificada, sem margem de erro, de abusiva - o que é um evidente despautério. O poder do juiz tem limites e, ainda que esses limites em alguns casos não sejam uma linha exata, a margem de poder do juiz não é de um relativismo radical, como alguns pretendem. É parte do saber jurídico indispensável para o exercício da função jurisdicional conhecer os limites do poder.

A crítica ao projeto de lei ignora o fato de que será um juiz a julgar se houve abuso de autoridade na decretação de prisão. Não há risco de que ela seja utilizada para criminalizar a atividade honesta de juízes e promotores. O perigo real é o oposto, de não ser aplicada com o devido rigor.

Mais aberto e passível de interpretações abusivas é, por exemplo, o crime previsto no art. 331 do Código Penal - desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Continuamente, todo cidadão está sujeito a ser vítima de uma interpretação abusiva desse tipo penal, sendo, por exemplo, denunciado pelo crime de desacato numa situação de mero exercício da liberdade de expressão. Infelizmente, a esse respeito, não se veem muitos juízes e promotores defendendo uma interpretação mais segura e mais próxima ao texto da lei. E menos ainda protestando contra a própria lei, que pode colocar em risco a liberdade dos cidadãos.

Nas críticas ao projeto de lei sobre abuso de autoridade, observa-se um seletivo rigorismo. Os tipos penais seriam muito abertos, passíveis de más interpretações, expondo juízes e promotores a pressões ilegítimas. Mas não se vê tal rigor sendo aplicado, por exemplo, com o projeto das Dez Medidas Anticorrupção ou com o chamado Pacote Anticrime, proposto pelo ministro Sergio Moro. Fossem utilizados os mesmos pesos e as mesmas medidas, esses projetos - deliberadamente dúbios e amplos, que expõem os cidadãos aos mais diversos achaques - não ficariam em pé. Uma maior igualdade no tratamento da legislação penal e processual penal pode trazer mais racionalidade, equilíbrio e justiça para todo o sistema de Justiça.

O Legislativo foi cuidadoso com o projeto de lei do abuso de autoridade. “As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”, diz o art. 1.º. Ao ignorar o conteúdo aprovado e tecer críticas infundadas, o que se vê é a tentativa de manter a impunidade do abuso de autoridade. Tal desequilíbrio não cabe no Estado Democrático de Direito.