Imagem ex-librisOpinião do Estadão

As gambiarras do Orçamento

Congresso criou tantos ‘puxadinhos’ sobre destinação de verbas que nem a Lei Eleitoral é capaz de impedir que recursos ajudem gestores aliados a turbinar candidaturas

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

O governo maquina mais uma manobra para irrigar redutos de parlamentares aliados na campanha eleitoral. Por razões óbvias, a lei eleitoral veda a liberação de recursos de emendas ao Orçamento nos três meses que antecedem à votação. Para driblá-la, o governo se vale de uma interpretação tendenciosa para permitir que as chamadas “transferências especiais” sejam repassadas antecipadamente aos municípios, mas sejam executadas no período eleitoral. Vulgarmente conhecida como “cheque em branco”, essa modalidade de emenda pode ser repassada sem que o parlamentar defina o uso da verba, que pode ser gasta discricionariamente pelos governos regionais. Essa é apenas a fase mais recente do processo de degradação crônica do Orçamento iniciado no governo Dilma Rousseff, que se tornou agudo no governo Bolsonaro.

Tal como o voto é a raiz do processo democrático, a alocação dos recursos dos contribuintes por meio de um Orçamento bem gerido e fiscalizado dá os seus principais frutos. A Constituição prevê que essa alocação seja planejada pelo Executivo e autorizada e fiscalizada pelo Legislativo.

As emendas parlamentares tinham originariamente um papel residual de, ante eventuais equívocos de projeção, anular despesas e corrigir erros e omissões. No presidencialismo de coalizão, elas foram transformadas em um instrumento adicional de governabilidade para recompensar a fidelidade ao governo.

Em sua prepotência característica, tanto Dilma Rousseff quanto Jair Bolsonaro se recusaram a orquestrar coalizões coerentes com as representações conferidas pelos eleitores às bancadas no Congresso. Quando sua inépcia começou a desgastar sua credibilidade, passaram a lotear as prerrogativas orçamentárias para sobreviver no Planalto.

Em 2015 fixou-se uma cota para emendas individuais e em 2019 para as emendas das bancadas estaduais. No mesmo ano foram aprovados os “cheques em branco”. Em 2020, foi ressuscitada a “emenda de relator”, conferindo imensos poderes discricionários para o relator distribuir as dotações e alterá-las ao longo da execução.

Assim, enquanto o Executivo abria cada vez mais mão do planejamento e execução do Orçamento, o Congresso reduzia cada vez mais a sua vinculação a critérios técnicos, equitativos e transparentes.

Os argumentos supostamente republicanos são de que as emendas permitem descentralizar recursos federais enviando-os aos municípios – “Mais Brasil, menos Brasília”, conforme prometeu o presidente Jair Bolsonaro. Mas o Brasil já é uma Federação em que os recursos são bastante descentralizados, com competências bem definidas em relação aos gastos.

Na prática, a atomização dos recursos federais submete os critérios técnicos aos políticos. Investimentos típicos da União, de menor apelo eleitoral, mas cruciais para a produtividade, como em infraestrutura ou em serviços integrados, como o SUS, são preteridos em favor de alocações arbitrárias.

Não que esses recursos sejam necessariamente mal empregados, mas não há como garantir que não o sejam. Tampouco há como garantir uma distribuição equitativa. A discricionariedade do relator garante que as emendas sejam distribuídas aos apoiadores do governo em prejuízo dos outros congressistas. Esse “orçamento paralelo” está hoje na casa dos R$ 16 bilhões, o equivalente a 80% das outras emendas individuais e coletivas.

Se esse procedimento opaco não pode ser classificado como corrupção, cria condições para ela. A Polícia Federal investiga a existência de um “feirão de emendas”. Suspeita-se que há parlamentares que cobram entre 10% e 20% sobre o valor das emendas aos municípios.

A proliferação de “puxadinhos” orçamentários atenta contra os princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade, e distorce as políticas públicas federais, por servir a interesses paroquiais dos parlamentares antes que ao interesse coletivo. O resultado são gastos pulverizados, de baixa qualidade, enviesados por propósitos eleitoreiros e que, fatalmente, são um convite à corrupção. Em outras palavras: “Mais Brasília, menos Brasil”.