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As provas gritam

A sucessão de testemunhos atestando, na CPI da Pandemia, a insanidade da conduta do governo na crise confirmou o quadro de irresponsabilidade

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Por Notas&Informações
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Bastaram duas semanas de trabalho para que a CPI da Pandemia reunisse evidências suficientes a respeito da negligência do governo de Jair Bolsonaro nos diversos aspectos do combate à covid-19, em particular na aquisição de vacinas.

Nada do que veio à luz era desconhecido dos brasileiros, mas a sucessão de testemunhos atestando, sob juramento, a insanidade da conduta do governo na crise confirmou o quadro de irresponsabilidade que nos trouxe até aqui – com mais de 430 mil mortos, uma pandemia fora de controle e um sistema de saúde à beira do esgotamento.

A esta altura, o esperado depoimento do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, sob cuja gestão a tragédia adquiriu contornos de escândalo, pouco teria a acrescentar, na prática, ao que já se sabe.

Ainda assim, é sintomático que o intendente tenha solicitado habeas corpus para ficar calado na CPI, sob o argumento de que não pode produzir provas contra si mesmo, pois já é investigado sob suspeita de, como ministro, ter contribuído para o caos na saúde em Manaus, onde pacientes de covid-19 morreram sem oxigênio.

No caso de Pazuello, qualquer coisa que venha a dizer à CPI será prova de sua incompetência e comprometerá seu ex-chefe, o presidente Bolsonaro, a quem declarou publicamente total submissão. Por isso, tanto a desculpa esfarrapada que Pazuello inventou para não comparecer à CPI na data inicialmente marcada como seu anunciado silêncio são uma tácita admissão de culpa. 

A responsabilidade do governo é tão cristalina e o desfecho da CPI, tão óbvio, que Bolsonaro parece ter concluído que só lhe restou a alternativa de tumultuar os trabalhos da comissão. O grotesco espetáculo do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, ofendendo o relator da comissão, Renan Calheiros, faz parte dessa tática – confirmada pelo próprio presidente Bolsonaro ao também xingar o senador Calheiros.

A algazarra bolsonarista, contudo, não foi capaz de abafar o impacto da detalhada descrição, na CPI, das muitas oportunidades desperdiçadas pelo governo para adquirir vacinas. Diante do que foi exposto, não é absurdo inferir que talvez o presidente Bolsonaro tenha recusado as vacinas não só porque menosprezou a doença, mas porque acreditou no que os lunáticos que o aconselham chamam de “imunidade de rebanho”.

Como se sabe, atinge-se a “imunidade de rebanho” quando uma grande parte da população é vacinada, criando-se assim uma barreira contra a expansão da contaminação. Outra maneira de obter a “imunidade de rebanho” é, na ausência de vacina, permitir a expansão da doença de modo a desenvolver imunidade na maior parte da população. No caso da covid-19, contudo, por ser uma doença mortal, essa opção nem deveria ter sido cogitada – a não ser que a morte de milhares de compatriotas não signifique nada para Bolsonaro, o que parece ser o caso.

Em abril do ano passado, Bolsonaro declarou que, “como dizem os infectologistas, 60%, 70% da população será infectada e só a partir daí nós teremos o país considerado imunizado”. Essa convicção, ditada pelos “infectologistas” das redes sociais, provavelmente foi decisiva para que o presidente, depois de desdenhar do vírus, trabalhasse contra a imunização – e receitasse cloroquina para os doentes.

Inventou várias desculpas para não comprar vacinas: citou supostas cláusulas “leoninas” nos contratos com farmacêuticas – que são aplicadas em todo o mundo; disse que não compraria imunizantes sem aprovação prévia da Anvisa, o que jogou o Brasil para o fim da fila da vacinação no mundo; e descartou pressa para comprar vacinas porque, segundo disse, os fabricantes é que deveriam demonstrar interesse em vender para o Brasil.

Tudo somado, é lícito supor que Bolsonaro na verdade nunca quis a vacina – a ponto de sabotar o imunizante do Butantan, sem o qual quase ninguém no Brasil estaria vacinado. Certo de que a “gripezinha” logo passaria, também fez campanha sistemática contra medidas preventivas e restritivas, que certamente salvaram muitas vidas. Assim, o ex-ministro Pazuello pode até calar na CPI, mas as provas gritam.