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Bolívia desgovernada

Ambição desmedida de Evo Morales lançou a Bolívia em uma crise política sem precedentes na história recente do país

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Por Notas & Informações
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A ambição desmedida de Evo Morales lançou a Bolívia em uma crise política sem precedentes na história recente do país, que está à beira da anomia. Não fosse por seu apego ao poder e desprezo pelas regras mais comezinhas da ordem democrática, Evo poderia ser lembrado como o líder indígena que ao ascender à presidência ajustou a economia boliviana, gerou crescimento e reduziu substancialmente a extrema pobreza em seu país. No entanto, ao lançar mão de uma série de artimanhas legais para permanecer no poder - a última delas malsucedida, o que o levou a renunciar no domingo passado -, corre o risco de entrar para a história como mais um pitoresco caudilho latino-americano.

A Bolívia vive hoje o ápice de uma crise iniciada em 2016, quando Evo Morales se recusou a aceitar a derrota no referendo sobre a reforma constitucional promovida por seu governo a fim de incluir na Constituição uma autorização para que ele pudesse concorrer ao quarto mandato (2020-2025). O "não" venceu por 51% a 49%, ou seja, a maioria dos bolivianos rechaçou a tentativa de Evo dar um "golpe legal".

O então presidente recorreu ao Tribunal Constitucional, instância máxima do Poder Judiciário da Bolívia, alegando que "votar e ser votado é um direito humano". A Corte acolheu a tese fajuta, permitindo que Evo se lançasse candidato na eleição realizada no mês passado.

O que já começara errado terminou pior ainda. A apuração indicava segundo turno entre Morales e o oposicionista Carlos Mesa. Até que, misteriosamente, uma queda de energia interrompeu o trabalho de contagem dos votos. Quando restabelecida a luz, Evo estava matematicamente eleito no primeiro turno. Aparência de fraude e cheiro de fraude. Só poderia ser fraude.

A Organização dos Estados Americanos (OEA) recomendou a realização de uma nova eleição. De início relutante, Evo acabou concordando com o novo pleito mantendo-se candidato, o que abriu novo capítulo da crise. Uma série de violentos confrontos entre seus apoiadores e a maioria contrária à sua reeleição irrompeu no país, levando a uma rápida degradação da autoridade do mandatário à frente do Estado e do governo.

Na manhã de domingo, o comandante das Forças Armadas, general Williams Kaliman, "sugeriu" que o presidente renunciasse diante da "conflituosa situação interna" na Bolívia. Em um lampejo de sensatez, Evo renunciou na tarde do mesmo dia. "Renuncio para que (Carlos) Mesa e (Luis Fernando) Camacho não continuem perseguindo, sequestrando e maltratando meus ministros, líderes sindicais e suas famílias, e para que não continuem prejudicando comerciantes, sindicatos, profissionais independentes e transportadores que têm o direito de trabalhar", disse o ex-presidente.

Além de Evo, renunciaram seu vice, Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Víctor Borda, e a presidente e o vice-presidente do Senado, respectivamente, Adriana Salvatierra e Rubén Medinacelli. Neste vácuo de poder, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Añez, reivindicou a presidência e a responsabilidade de conduzir o país até a realização de nova eleição. A verdade é que ninguém é capaz de dizer quem governa a Bolívia hoje e menos ainda o que acontecerá com o país amanhã.

A crise boliviana preocupa por seus desdobramentos no Brasil. A maior fronteira terrestre do País é com a Bolívia - mais de 3 mil quilômetros. Há intenso comércio entre os dois países, legal e ilegal. Não se descarta uma crise imigratória em caso de recrudescimento da disputa pelo poder no país vizinho. Além disso, o Brasil é o maior comprador de gás natural da Bolívia. Embora venha reduzindo o volume de importação, ainda se trata de um comércio importante. Mas em sua primeira manifestação sobre a crise no país vizinho, o presidente Jair Bolsonaro se mostrou preocupado com a confiabilidade de nossas urnas eletrônicas. O voto é impresso na Bolívia, o que, para Bolsonaro, teria facilitado a elucidação da fraude. Roga-se por um olhar mais acurado do presidente a fim de prevenir que uma crise externa não se transforme em uma crise doméstica.