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Brumas de uma tragédia ao sol

Nossa mastodôntica engrenagem estatal se destina ao quase nada ou a ser corrompida

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Por Flávio Tavares
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A tragédia dos resíduos de Brumadinho terá sido apenas um acidente brutal? Ou um crime articulado pela insânia da cobiça, em que a irresponsabilidade empresarial e a burocracia fiscalizatória se aliaram e inventaram a fantasia dos papéis?

Tal qual no horror de 2015 em Mariana, a realidade virou acessório. Os licenciamentos “estavam em dia”, mas as licenças não consultaram o mundo real. Nem mesmo o infortúnio nos despertou.

Simular que catástrofes são acidentes é grosseiro e nos faz cúmplices da catástrofe renovada. Conhecíamos o perigo das “barragens a montante”, proibidas noutros países, mas nada fizemos. Três anos e meio depois do horror da lama ácida esterilizando terras férteis de Minas e Espírito Santo e transformando o Rio Doce em amargo fel quase sem vida, tudo se repetiu.

Tal qual a extração de petróleo, a mineração é atividade destrutiva. Dilacera a natureza (e, assim, a vida), mas deixamos assim... Nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, descreveu a dor pela transformação de sua mineira Itabira natal em crateras que viravam montanhas: “Por isto sou triste, ... de ferro./ Noventa por cento de ferro nas calçadas/ oitenta por cento de ferro nas almas/ ... mas como dói”.

Tão só no terceiro trimestre de 2018, a Vale teve lucro líquido de R$ 5,8 bilhões, que o presidente da empresa, Fabio Schvartsman, festejou como fruto da “otimização dos níveis de produção”. Calou-se, porém, sobre os “níveis” de respeito à natureza, como se a natureza não fosse o núcleo do lucro. O “homem de preto” (tradução de seu sobrenome em alemão) ignorou o que não devia esquecer.

Seguimos com a mentalidade extrativista dos séculos 17 e 18, furando o solo a esmo. Primeiro foi o ouro. Agora, o minério de ferro e suas cicatrizes colossais, que transformam áreas de exploração em quilométricas e profundas crateras estéreis, onde nem erva daninha brota.

Logo, as “barragens” - o descartado, que se faz resíduo ácido se acumula como montanha que, ao se romper, devasta tudo. Os corpos despedaçados de Brumadinho (alguns, só amontoados de vísceras) mostram a fúria.

Somente na chacina de Canudos, no século 19, morreram (ou “desapareceram”), em um só dia e de uma só vez, tantos ou mais do que agora. Milhares, narrou Euclides da Cunha neste jornal, em 1897. As fotografias de Flávio de Barros das esfarrapadas 400 mulheres e crianças “jagunças-prisioneiras” testemunharam os sobreviventes. Neste 2019 não chegam a dez os resgatados com vida.

Hoje, 122 anos depois, já não se tratou de “operação militar” contra gente pobre que queria amar seu Deus e se governar à sua maneira. Mas o desprezo pela vida se agravou, destruiu o meio ambiente e esterilizou terras, rios e riachos.

Uma das maiores empresas do País cometeu o horror em nome do desenvolvimento econômico. As exportações fazem da Vale um de nossos símbolos mundo afora, e isso já a obrigaria a ter amor à terra da qual extrai tanta riqueza. Mas, após a catástrofe, uma das primeiras iniciativas foi contratar o “marqueteiro” Nizan Guanaes, que transforma absurdos em hábitos, como o tal de “adoro pizza com guaraná”...

Onde está a responsabilidade empresarial? 

A mineração, concessão do Estado, não dá “direito” a devastar. O que seria de um jornal que mentisse e inventasse - como as “redes sociais” -, só por agradar e ter lucro, não para informar e analisar?

Em tudo, a responsabilidade deve começar pelo empresário. É impossível criar um “Estado policial-fiscalizatório”, que vigie cada atividade - mineradora, abatedouro de frango, poço de petróleo ou floresta nativa.

Hoje, nossa mastodôntica engrenagem estatal se destina ao quase nada ou a ser corrompida. Presente em tudo com formulários e carimbos, é alheia ao fundamental. A parafernália burocrática ocupa espaços, mas pouco deixa para a realidade. No caso da mineração, o governo federal tem apenas 35 fiscais destinados às 790 barragens de resíduos espalhadas pelo País. O número ridículo desnuda tudo.

Por isso, a tragédia de Brumadinho vai além das centenas de mortos e “desaparecidos”. Ou da devastação de terras férteis e rios. O terrível é nossa cumplicidade (direta ou indireta) num crime articulado pela irresponsabilidade empresarial e pelo descaso dos governantes.

A cobiça foi ponto de partida e de chegada. A mineração é mais destrutiva do que o desmatamento. Podemos replantar árvores, mas... e os devastadores resíduos? Vemos a natureza como traste incômodo, não como suporte da vida no planeta, obra sagrada a preservar.

No Senado e Câmara dos Deputados, morreram nas gavetas todos os projetos de lei que ampliavam exigências sobre as barragens. Em 2014, a Vale e mineradoras menores financiaram a eleição de 145 deputados estaduais, 101 deputados federais e 10 senadores de 27 partidos, do PSL ao PCdoB, do MDB ao PT, PSDB, PP, DEM, PDT e rabichos de menor porte, e assim colheram o fruto do plantio milionário...

Na legislatura da Câmara concluída em 31 de janeiro, a Vale investiu mais de R$ 82 milhões na “bancada da lama”, liderada pelo deputado Leonardo Quintão, do MDB de Minas. Tudo passava por ele. Não reeleito, hoje está na Casa Civil, em Brasília, como um dos conselheiros do presidente Bolsonaro.

Na campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro - o eleito - prometeu afrouxar as leis ambientais e acabar com “a indústria das multas”, como ele inventou de chamar as punições. Mas as multas são só virtuais. Desde 2015 a Vale acumula R$ 389 milhões em multas, sem ter pago um centavo. Recursos judiciais sem fim livram sempre os infratores. Ainda pensará em “afrouxar”? Seguiremos escondidos na bruma, sem ver o sol que a tragédia de Brumadinho mostra agora?

*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005 E PRÊMIO APCA EM 2004, FLÁVIO TAVARES É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA