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Calor infernal é recado incômodo

Cabe aos líderes políticos sensibilizar a sociedade sobre defesa do meio ambiente, ainda que os eleitores estejam mais preocupados com inflação do que com as mudanças climáticas

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Por Notas & Informações
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Uma combinação de calor extremo e tempo seco tem causado incêndios florestais devastadores na Europa desde o último fim de semana. As noites em Madri têm registrado temperaturas de 25 graus, o que teria ocorrido apenas 27 vezes nos últimos cem anos – 12 delas desde 2012. São vários, além de óbvios, os efeitos das mudanças climáticas em todo o planeta – de catástrofes a alterações na culinária, como observado na Itália e na França. Estudos não apenas provaram, como mensuraram as consequências de ações diretas do homem sobre a temperatura do planeta, um fato inequívoco e irreversível. O desafio que se impõe para conter emissões e mitigar suas consequências é gigantesco, especialmente para as nações que dependem majoritariamente de combustíveis fósseis.

Felizmente, esse não é o caso do Brasil. Pioneiro em biocombustíveis e dono de uma matriz elétrica predominantemente renovável, o País tem todas as condições de liderar a transição rumo a uma economia verde. Essa posição de destaque, porém, fica completamente desmoralizada quando o País se recusa a fazer o mínimo que dele se espera. Como mostrou o Estadão, a mais recente edição do Relatório Anual de Desmatamento no Brasil, da MapBiomas, uma iniciativa do Observatório do Clima realizada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia, apontou que o desmatamento aumentou assustadores 20,1% no ano passado e alcançou 16,5 mil quilômetros quadrados, o equivalente a uma área verde próxima do Estado do Rio de Janeiro.

O relatório é um dos mais completos diagnósticos do desmazelo do governo Jair Bolsonaro na área ambiental. Quase 70 mil alertas foram identificados, validados e refinados em todo o território nacional, com elaboração de laudos com imagens anteriores e posteriores às ocorrências. O principal alvo, em termos territoriais, não surpreende: a Amazônia, que gerou 66,8% de todos os alertas e perdeu 18 árvores por segundo. Nada menos que 86% da área total desmatada na região no ano passado ficava, total ou parcialmente, em um imóvel registrado no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural, o que permitiria identificar e punir os responsáveis com precisão. 

Mas o projeto de destruição da democracia e do tecido social liderado por Bolsonaro, tão agressivo com os adversários, é benevolente com aqueles que cometem crimes ambientais e ameaçam não só o futuro da sociedade, mas a própria economia. Estudos sobre rios voadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) provaram, ainda na década de 1970, que boa parte das chuvas no centro-sul tem origem na Amazônia. É sabido que o desmate da floresta comprometeria de forma irreparável o balanço hídrico das regiões que concentram as maiores lavouras do País.

Apostando na impunidade de aliados e de si mesmo, Bolsonaro acredita que não será cobrado pelos eleitores por sua conivência com a devastação da Amazônia. Em tempos de guerra na Ucrânia, preços elevados e avanço da fome, preocupações sobre o meio ambiente e as mudanças climáticas de fato tendem a ficar em segundo plano para a parcela da sociedade que luta pela sobrevivência diária.

  Isso não acontece só no Brasil. Uma pesquisa nos EUA, publicada pelo jornal The New York Times, mostrou que apenas 1% dos eleitores apontou as mudanças climáticas como a questão mais importante a ser enfrentada no país, muito atrás da inflação e da economia – e o fracasso do pacote socioambiental de US$ 6 trilhões do presidente Joe Biden talvez seja o reflexo mais claro dessa percepção. 

Não há razões para acreditar que no Brasil os eleitores pensem de forma muito diferente, mas isso não autoriza a classe política a ignorar essa temática. Defender o meio ambiente e reduzir as emissões para conter as mudanças climáticas é obrigação de qualquer liderança que tenha uma visão de longo prazo sobre o papel do Estado e o futuro do País. No Brasil, a tarefa de sensibilizar a sociedade a respeito de sua relevância é relativamente fácil: basta preservar a Amazônia, algo que une os interesses do agronegócio, o setor mais pujante da economia, aos das novas gerações, mais conectadas a uma causa que deveria ser de todos.