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Cidade Limpa em risco

Atual legislatura precisa abortar esta tentativa de estupro visual do espaço público

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Por Notas & Informações
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A Câmara dos vereadores de São Paulo aprovou, em primeiro turno, um projeto de lei que debilita a Lei Cidade Limpa permitindo a instalação de outdoors no topo dos prédios. Entre as muitas e renitentes mazelas que degradam a qualidade de vida dos paulistanos - engarrafamentos, poluição dos rios, assentamentos ilegais, ruas esburacadas -, a restauração da paisagem urbana foi uma das poucas conquistas que literalmente saltaram aos olhos. Se as mudanças forem aprovadas, o retrocesso será igualmente visível.

Aprovada em 2006, a Cidade Limpa proibiu a propaganda em outdoors e regulamentou o tamanho de letreiros e placas de estabelecimentos comerciais. O refrigério foi um marco da cidadania paulistana reputado internacionalmente e prestigiado pela ampla maioria da população. Como diz o informativo da própria Prefeitura, a lei recuperou “certos direitos fundamentais da cidadania que haviam se perdido com o tempo. O direito de viver em uma cidade que respeita o espaço urbano, o patrimônio histórico e a integridade da arquitetura das edificações. O direito a um relacionamento mais livre e seguro com as áreas públicas. A Lei Cidade Limpa significa a supremacia do bem comum sobre qualquer interesse corporativo”. Agora esta supremacia está ameaçada.

Eduardo Tuma (PSDB), autor do projeto e presidente da Casa, argumenta que em tempos de pandemia “a mudança vai permitir geração de renda, aquecimento da economia e ampliação da receita tributária”. Mas, como disse o consultor em política urbana Gabriel Rostey à Rádio CBN, isso é uma falácia. Primeiro porque o vereador já tentara emplacar o mesmo projeto em 2013 e depois em 2015. Depois porque, antes da lei, a profusão de outdoors pulverizava o valor da publicidade, gerando retornos irrisórios para o poder público e a iniciativa privada. Agora, ao contrário, a restrição das peças publicitárias a espaços seletos, como terminais viários, dá à Prefeitura poder de barganha que pode ser convertido, por exemplo, em mobiliário urbano ou pontos de ônibus.

De resto, como notou em artigo no Estado o urbanista da Universidade Mackenzie Valter Caldana, em relação ao montante geral do orçamento do Município, os valores não compensarão os estragos. Segundo ele, a Cidade Limpa foi “a maior vitória no campo da urbanidade que São Paulo vivenciou neste século” e seus benefícios não se limitam à paisagem, mas “vão da área da saúde à área econômica, pois fazem a cidade mais atrativa nacional e internacionalmente e, portanto, com melhor ambiente de negócios”. Numa época de profusão dos meios de comunicação digital, a proliferação de outdoors conspurcando os céus da cidade seria, além de tudo, anacrônica.

Em anos recentes, a eficácia da lei já estava sob pressão por causa da negligência das autoridades. Na gestão de Fernando Haddad (PT) algumas regras foram desidratadas e as multas aos infratores chegaram a cair 90%. Agora, especialistas ouvidos pelo Estado apontam que a permissão de publicidade para um setor - no caso, os edifícios - pode gerar uma reação em cadeia, sob o pretexto de sustentar o princípio constitucional da isonomia.

No campo da poluição visual, não faltam tarefas ao poder público. Como disse Caldana, “existem muitas outras prioridades que precisam de atenção, como, por exemplo, as calçadas, o enterramento da fiação, mobiliário urbano e arborização”.

A Cidade Limpa é motivo de orgulho para a capital paulista e um exemplo para outras cidades. Os paulistanos não tolerarão que, em troca de alguns trocados sabe-se lá para quem, sua cidade seja novamente inundada por milhares de outdoors, faixas, cartazes, bonecos infláveis, lambe-lambes, cavaletes e outras tralhas em geral de péssimo gosto. Se a atual legislatura não quiser poluir sua reputação, precisa abortar esta tentativa de estupro visual do espaço público. Se não, cabe ao prefeito Bruno Covas (PSDB) vetar a infâmia. Em última instância, as urnas dirão, espera-se, a quem serve esta manobra, se ao interesse comum de todos ou aos interesses corporativos de uns poucos.