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Coragem cívica

Divergências políticas não podem ser insuperáveis a ponto de inviabilizar a própria política

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Por Notas & Informações
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É inspiradora a notícia de que importantes integrantes do Partido Republicano participaram da convenção do Partido Democrata que oficializou a candidatura de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos. Trata-se de raro movimento de convergência eleitoral entre membros de partidos que polarizam desde sempre a política norte-americana, e tudo por uma causa em comum: ajudar a eleger um governo que interrompa a espiral de degradação democrática e a interdição do debate político que se verificam no país desde a eleição do presidente republicano Donald Trump. 

“Os americanos estão exaustos com o caos infinito e o drama diário emanados da Casa Branca. Eles querem apenas estabilidade”, disse o ex-deputado republicano Charlie Dent ao declarar apoio a Joe Biden, resumindo o grande objetivo desse movimento.

É um gesto que vai muito além do seu efeito simbólico, em si já bem forte. Trata-se de uma atitude concreta de superação de diferenças nada desprezíveis com o objetivo de debelar uma das crises mais graves da história dos Estados Unidos. E isso requer, antes de mais nada, coragem cívica.

É preciso ter uma visão sobre a democracia muito mais ampla do que o restrito universo político-eleitoral. É necessário entender a democracia como o exercício pleno da cidadania, numa combinação de igualdade, participação política e liberdade, com respeito incondicional à preservação do espaço público comum, local onde o poder político se realiza de fato. Para ser efetivo, portanto, esse poder deve ser sempre uma construção coletiva, que envolve quem o exerce e quem faz oposição.

Na configuração autoritária representada pelo trumpismo e por seus movimentos correlatos, como o bolsonarismo, o poder só pode ser fruto exclusivo do desejo do líder, que se exerce pela interdição do espaço público com o entulho da ojeriza absoluta ao contraditório e com o monturo das mentiras deliberadas contra aqueles que são escolhidos como inimigos do povo. Não à toa, a simples perspectiva de não ser reeleito, resultado normal em qualquer democracia, é tratada por Donald Trump como golpe de traidores da pátria.

A resultante dessa configuração nem poder chega a ser de fato: sem qualquer legitimidade, salvo aquela inventada pelos delírios messiânicos do líder cesarista, limita-se a ser fonte de desagregação e de confusão política e moral. Como consequência, a presidência da República deixa de ser referência na administração do país, fenômeno que já seria desastroso em qualquer circunstância, mas que é especialmente grave quando se enfrentam crises múltiplas como as causadas pela pandemia de covid-19. 

Por esse motivo, está sendo difícil reconhecer nos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro a autoridade que naturalmente teriam, pela posição que ocupam, para conduzir seus governos em meio ao grande desafio trazido pela pandemia; ao contrário, tornaram-se referência de truculência, amadorismo e irresponsabilidade, tudo como consequência do aviltamento do poder democrático.

É contra isso que os verdadeiros democratas, não importa a coloração partidária, devem se insurgir o quanto antes. A terrível perspectiva de desintegração da democracia e da consolidação do exercício irresponsável do poder deveria bastar para que as forças políticas relevantes deixem de lado suas diferenças neste momento e se aliem em defesa do restabelecimento da razão como primado da governança e do respeito à divergência como pilar cívico. 

Isso demanda consciência do verdadeiro papel da política na construção de um país. A política deve ser veículo por meio do qual os diversos setores da sociedade encaminham suas demandas para a formulação de políticas públicas, e não uma forma de conferir supremacia a um grupo sobre outro nem de obter privilégios para os agregados. Portanto, se é de democracia que se trata, mesmo as mais profundas divergências políticas não podem ser insuperáveis a ponto de inviabilizar a própria política – escancarando o caminho para o populismo autoritário que Trump e seus imitadores mundo afora tão bem representam.