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Cornucópia eleitoral

Governo Bolsonaro atropela o que foi aprovado pelo Congresso e, na calada da noite, abre espaço orçamentário por decreto para pagar emendas parlamentares a poucos dias das eleições

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Por Notas & Informações
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A menos de um mês do primeiro turno, está claro não haver mais limites legais e fiscais para conter o presidente Jair Bolsonaro. Nem mesmo o rito orçamentário sobreviveu ao ímpeto de destruição associado ao desespero eleitoral. Recorrendo a uma manobra, o Executivo conseguiu liberar recursos para o pagamento das emendas de relator, que havia sido parcialmente contingenciado na última revisão bimestral do Orçamento, em julho. 

Com a pressão crescente dos aliados, o governo não quis aguardar o prazo para o próximo relatório, no fim de setembro, nem ter o trabalho de elaborar um documento extemporâneo com a previsão atualizada das receitas e despesas primárias da União. Optou por um decreto e simplesmente se livrou de uma obrigação imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal para entregar R$ 5,6 bilhões nas mãos do Centrão. 

Publicado em edição extra do Diário Oficial da União na noite do dia 6 de setembro, o decreto deu praticamente força de lei às decisões tomadas pela Junta de Execução Orçamentária (JEO), colegiado formado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e comandado de fato pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Com ele, será possível resolver dois problemas de uma só vez: impedir o repasse de verbas para as áreas de ciência, tecnologia e cultura e liberar o espaço fiscal necessário para o empenho de emendas de relator, base do esquema do Orçamento Secreto.

Revisitar o roteiro que teve na edição do decreto o seu último ato revela a conquista de um poder inédito do Executivo para corromper o Parlamento. Legislações que impediram o contingenciamento dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDTC) e garantiram apoio financeiro aos setores cultural e de eventos após a pandemia de covid-19 foram aprovadas por ampla maioria dos parlamentares. Foram, no entanto, vetadas pelo presidente. Os vetos, por sua vez, foram derrubados pelos deputados e senadores e, em seguida, promulgados. O governo apelou, então, à criatividade. 

Ao editar duas medidas provisórias (MPs), restabeleceu o poder dos vetos presidenciais e inaugurou uma nova fase no processo legislativo, em clara violação ao sistema de freios e contrapesos e ao princípio constitucional da separação dos Poderes. Uma semana depois, enquanto o Congresso discutia se devolveria ou não os textos ao Executivo, o governo publicou o decreto que referendou o bloqueio das verbas previsto nas MPs. Ao mesmo tempo, comprou o silêncio dos parlamentares, já que esse dinheiro servirá justamente para irrigar suas bases a poucas semanas das eleições.

É inegável que o orçamento secreto mudou a relação entre Executivo e Legislativo – para pior e, talvez, de forma definitiva. Na proposta orçamentária de 2023, o Executivo reservou R$ 19,4 bilhões para as emendas de relator, 22% a mais do que neste ano. Para garantir esses repasses, o governo cortou em 59% a verba do programa Farmácia Popular, que distribui gratuitamente medicamentos para o tratamento de asma, hipertensão e diabetes a 21 milhões de pessoas. Ainda que Guedes tente diminuir a importância das emendas de relator a “menos de 1%” das despesas, é evidente que preservar essa rubrica se tornou a única prioridade do governo. É ela que garante uma base parlamentar cordata e disposta a fechar os olhos para o absurdo.

Este é mais um legado que Bolsonaro deixa ao País. Após quase quatro anos de atrocidades diárias coroadas pelo vergonhoso discurso do presidente no Bicentenário da Independência, atropelar as leis e regras orçamentárias para garantir o pagamento das emendas à custa da ciência, tecnologia, cultura e até mesmo da saúde se assemelha a uma brincadeira infantil. Já não choca mais ninguém – nem deputados e senadores, beneficiados pelos recursos, nem os servidores públicos, que têm dado respaldo técnico a todas essas medidas. Anestesiada, a sociedade assiste ao desrespeito ao arcabouço fiscal, às leis e à Constituição sem lembrar que, há seis anos, manobras como estas balizaram um implacável pedido de impeachment de uma presidente.