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De caso pensado

Livros mostram que decisão de Bolsonaro e de Trump de ignorar a pandemia foi deliberada

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Por Notas & Informações
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Tanto o presidente Jair Bolsonaro como seu mestre, o presidente dos EUA, Donald Trump, tinham informações mais que suficientes, no início da pandemia de covid-19, para saber que a doença ganharia dimensões catastróficas se não fossem tomadas medidas preventivas de distanciamento social e padrões de higiene. E ambos decidiram deliberadamente ignorar essas informações, renunciando à sua responsabilidade como governantes e colocando em risco a vida de seus concidadãos.

Dois livros recentemente publicados, com relatos de bastidores, mostram que parte considerável da tragédia da pandemia, nos EUA e no Brasil, poderia ter sido mitigada não fosse por essa decisão política consciente por parte de Trump e Bolsonaro. Não à toa, os dois países estão entre os mais atingidos pela doença, com cerca de 350 mil de mais de 1 milhão de mortos em todo o mundo.

Um dos livros é Um Paciente Chamado Brasil, do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. No relato, Mandetta afirma que advertiu com antecedência o presidente Bolsonaro sobre a gravidade da pandemia, e o fez diante de diversos outros ministros, para ter testemunhas. Diz também que tentou fazê-lo ainda antes, “mas ele não quis ver” e “nunca aceitou (...) ver a realidade que seu governo estava para enfrentar”. Preferiu abraçar a tese confortável, defendida por seus filhos e por conselheiros aduladores, de que se tratava de uma “gripezinha” sem importância e de que todas as medidas tomadas por governadores tinham como objetivo prejudicar a economia para enfraquecer seu governo. 

Convencido afinal por ministros militares a prestar atenção ao que o Ministério da Saúde queria dizer, Bolsonaro aceitou se reunir com Mandetta e outros auxiliares no final de março. No encontro, Mandetta lhe forneceu os dados disponíveis e lhe perguntou se estava preparado para ver caminhões do Exército levando cadáveres. A esse propósito, o ex-ministro revela no livro que tentou conversar com Bolsonaro, dias antes, sobre a criação de um protocolo para os sepultamentos de mortos por covid-19, mas o presidente se irritou e “disse que aquele era um assunto mórbido demais para ser tratado pelo governo federal”, ordenando a Mandetta que mandasse o protocolo “às favas”.

Mesmo depois de ouvir todas as considerações de Mandetta, baseadas em números e na ciência, Bolsonaro, revela o ex-ministro, “assumiu a negação absoluta” e “encerrou a reunião do mesmo jeito que entrou nela”. No dia seguinte ao encontro, um domingo, Bolsonaro foi a Taguatinga e promoveu aglomeração de simpatizantes, em franco desafio às recomendações do Ministério da Saúde. Naquele fim de semana, o Brasil havia chegado aos 114 mortos. Hoje, contabiliza mais de 140 mil.

Já o presidente Trump, segundo informa o livro Rage (raiva), do jornalista Bob Woodward, minimizou intencionalmente a gravidade da pandemia, mesmo tendo pleno conhecimento de sua gravidade, sob o argumento de que era preciso evitar o “pânico” nos EUA. 

Segundo Woodward, Trump recebeu informações consistentes, ainda em janeiro, segundo as quais a pandemia que estava por vir seria o maior desafio que seu governo enfrentaria. Ainda assim, optou por sonegar essas informações de seus compatriotas, como se a ignorância fosse a melhor maneira de lidar com a pandemia. “O vírus não terá a menor chance contra nós. Nosso futuro continua mais brilhante do que qualquer um pode imaginar”, disse o presidente americano no final de março, quando o país contava 1.700 mortos. Hoje, o total superou 200 mil.

A partir da leitura desses espantosos relatos, chega-se à conclusão de que Trump e Bolsonaro foram (e continuam sendo) simplesmente incapazes de pensar em seus concidadãos senão como eleitores. Negam-se a governar, limitando-se a fazer comícios e elevando a mistificação e o embuste à categoria de políticas de Estado. E, quando a realidade da pilha de mortos contraria a fantasia da “gripezinha”, basta fazer como Trump e duvidar dos números oficiais ou como Bolsonaro e dizer: “E daí?”.