A dois meses das eleições legislativas na Argentina, a coalizão do governo peronista foi atropelada nas eleições primárias, que fazem a triagem dos candidatos mais competitivos. “Algo não fizemos bem para que o povo não nos acompanhasse”, admitiu o presidente Alberto Fernández, “e todos escutamos o veredicto.” Isso é inequívoco. Precisariam ser surdos para não escutar. Bem menos claro é se o governo compreendeu todo o mal que fez e qual caminho trilhará.
As primárias consolidaram as duas grandes coalizões que dominam a Argentina desde a redemocratização. No polo governista, a Frente de Todos aglutina o peronismo progressista (dominado pelo kirchnerismo) e outros movimentos de esquerda. Na oposição, Juntos por el Cambio reúne dos liberais aos peronistas de direita até os social-democratas.
As primárias foram uma espécie de plebiscito sobre o governo. Os 31% de votos da Frente marcam um tombo de 17 pontos em relação às eleições presidenciais de 2019. Os governistas perderam em 18 dos 24 distritos do país, incluindo Buenos Aires, um histórico bastião peronista, responsável por 40% dos votos nacionais. Foi a pior eleição da história do peronismo.
Já o Juntos, com 40% dos votos, teve sua maior vitória desde que foi formado, em 2015, para as eleições que levaram Mauricio Macri à presidência. Além de reter províncias tradicionais, a oposição levou outras tradicionalmente refratárias à direita, tomando ao peronismo o controle do interior, a fonte de seu poder.
A se confirmarem esses resultados nas eleições de novembro, que renovarão metade da Câmara e um terço do Senado, os peronistas, que já não tinham maioria na Câmara, perderão para a oposição a maior bancada. Mais catastrófica será a perda da maioria no Senado.
Os fatores econômicos pesaram. Fernández herdou de Macri a crise que frustrou a reeleição deste, mas fracassou em entregar suas promessas. Em dois anos de governo, foram criados 18 impostos; a inflação anual subiu para 50%; os salários se deterioraram; o desemprego cresceu – assim como a fuga de cérebros e de capital –; e, após um tombo de 10% em 2020, a economia deve crescer apenas 6,4% em 2021.
Pesou também a gestão da pandemia. A economia foi devastada por um longo lockdown – com um ano e meio sem aulas presenciais –, mas isso não impediu que o país tivesse um dos piores índices de mortes do mundo. Some-se a isso o atraso na imunização, o rechaço às vacinas dos EUA e escândalos como as “vacinas VIP” para os amigos do poder e as festas clandestinas do presidente violando sua própria quarentena.
Acima de tudo, as urnas manifestaram uma condenação ao autoritarismo peronista, materializado em um governo subordinado aos interesses da vice-presidente Cristina Kirchner, que, como lembrou o jornal La Nación, resultou no impulso oficial à impunidade de ex-funcionários processados ou condenados por corrupção; no afã por driblar a Justiça; na indiferença cúmplice com o narcotráfico; e em uma política exterior aliada às ditaduras da Venezuela, Cuba e Nicarágua.
O governo precisará escolher entre dobrar a aposta ou fazer um giro de 180°. Neste último caso, pode buscar consensos com a oposição, cuja vitória reflete não tanto um apoio incondicional da população quanto um castigo aos incumbentes. A insatisfação com o establishment político é ainda mais clara ante a ascensão inédita de um candidato de extrema direita: Javier Milei, apoiador de Jair Bolsonaro e Donald Trump, que levou 14% dos votos na capital.
Mas, dado o caráter da real dona do poder, Cristina Kirchner, é provável que a Frente parta para a mesma radicalização empregada nas eleições de metade do mandato de 2009, 2013 e 2017, e que lhe custou a derrota em todas elas. Isso implicará rachas com os correligionários de Fernández, mais intervenções na economia e possivelmente a impressão de dinheiro para abastecer orgias de gastos.
As eleições na Argentina servem para lembrar uma lição – que o Brasil tem custado a aprender pelo menos desde 2002 –: o populismo é ótimo para ganhar votos, mas péssimo para governar.