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Democracia desmoralizada

Mundo da irresponsabilidade generalizada gestou a catastrófica presidência de Jair Bolsonaro e a eleição do prefeito Marcelo Crivella

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Por Notas & Informações
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E eis que mais um governante do Rio de Janeiro foi preso. Muito ainda se falará sobre o rumoroso caso do prefeito Marcelo Crivella, detido a nove dias do final de seu desastroso mandato, sob acusação de chefiar organização criminosa movida a propinas. Mas nem é preciso esperar o desfecho do caso para que se constate a incrível frequência com que o eleitor fluminense escolhe mal seus dirigentes.

Recorde-se que o agora fichado Crivella conseguiu a proeza de ir para o segundo turno na eleição passada mesmo tendo legado à cidade que governava a pior administração de que se tem notícia. Ou seja: não contentes em terem jogado fora seu voto há quatro anos, quando Crivella foi eleito a despeito de ser quem é, muitos eleitores do Rio de Janeiro tornaram a fazê-lo quando já deveria estar clara para todos a sua inépcia.

Se a prisão do prefeito do Rio de Janeiro ainda no exercício do cargo, por incrível que pareça, já não tem tanta importância, pois se trata de evento tristemente corriqueiro na vida política fluminense, a notícia deve servir para que os eleitores brasileiros reflitam sobre como têm exercido seu direito de voto.

A escolha de governantes e representantes no Legislativo por meio do voto livre e direto não é algo trivial. Ao exercer esse direito, o eleitor assume a corresponsabilidade pelos destinos de sua cidade, de seu Estado e do País, razão pela qual deve fazê-lo de maneira consciente e ponderada.

Sabe-se, contudo, que isso nem sempre acontece, por uma série de razões – a começar pela desinformação e pela falta de educação cívica de parte considerável dos eleitores, que ou tomam seus desejos particulares como se fossem os interesses da coletividade na hora de decidir o voto ou fazem sua opção sem qualquer reflexão. Esse processo medíocre de escolha, quando generalizado, raramente deixa de resultar em desastre.

É evidente que o eleitor pode ser induzido a tomar decisões equivocadas por uma propaganda eleitoral eficiente ou pelo carisma do candidato, que com isso consegue esconder seus defeitos de caráter ou de formação. Mas é difícil entender como o mesmo eleitor que se queixa da corrupção e da inaptidão dos políticos é capaz de eleger, sem pestanejar e em sequência, candidatos tão flagrantemente desonestos e despreparados para a administração pública.

Era preciso uma dose cavalar de ingenuidade para acreditar, por exemplo, que Jair Bolsonaro, cujo único feito relevante até se tornar presidente foi ter transformado sua família numa holding parlamentar, seria mesmo o líder que moralizaria a política. Ou então que esse mesmo Jair Bolsonaro seria capaz de governar o País tendo se notabilizado em toda a sua vida política por sua gritaria reacionária, e não pelo par de projetos irrelevantes que apresentou no Congresso. No entanto, Bolsonaro venceu – e, mesmo sendo o pior presidente da história nacional, ainda vai razoavelmente bem nas pesquisas de opinião.

Diz-se que demagogos ganham eleições e mantêm alguma popularidade como consequência do cansaço dos cidadãos, desencantados com a política em geral. Por essa perspectiva, pode-se argumentar que o voto representa uma forma de protesto, mas também, e isso é mais grave, pode ser uma maneira de sabotar o processo eleitoral em si mesmo, desmoralizando a democracia – regime que, para muitos eleitores, infelizmente nada diz.

É como se os eleitores estivessem a declarar que o desfecho da eleição, qualquer que seja, não lhes diz respeito, renunciando liminarmente à responsabilidade que cabe a cada um dos cidadãos. E o eleito, nesse espírito, também assume pronto a repelir qualquer responsabilidade, que é sempre dos outros – sejam aqueles que lhe deixaram uma “herança maldita”, sejam aqueles que, segundo diz, não o deixam governar.

Tem-se então o mundo da irresponsabilidade generalizada, que gestou a catastrófica Presidência de Jair Bolsonaro, bem como a eleição do prefeito Crivella e de outros tantos picaretas – todos empenhados em alimentar a avacalhação da democracia, pois disso depende sua manutenção no poder.