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Democracias doentes

As autocracias exercitaram seus músculos e muitas democracias normalizaram medidas de exceção. O Brasil de Bolsonaro contribui para a recessão democrática

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Por Notas&Informações
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Segundo o Índice da Democracia da Economist Intelligence Unit, a pandemia impactou negativamente todas as regiões do mundo. Em 15 anos de edição, 2021 registrou a pior pontuação global e o maior declínio de um ano para outro.

O Índice é baseado em cinco categorias – processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis – que classificam quatro tipos de regime – “democracia plena”, “democracia falha”, “regime híbrido” e “regime autoritário”.

A saúde da democracia já estava em declínio havia anos. A crise agravou tendências como “uma abordagem cada vez mais tecnocrática na gestão social” e o recurso à coerção, resultando em “uma retração sem precedentes das liberdades civis tanto entre as democracias quanto entre os regimes autoritários”.

Em 2020, restrições à circulação, controle da mídia e vigilância já haviam provocado um declínio severo. Mas as altas taxas de mortalidade e a ausência de vacinas ofereciam um caso convincente para restrições excepcionais e a maioria das pessoas se dispôs a sacrificar liberdades individuais em prol de um bem maior.

Previstas para durar limitadamente, essas restrições já estabeleciam precedentes temerários. Em 2022 a pandemia tende se dissolver em um quadro endêmico, mas o risco de que esses poderes emergenciais sejam normalizados é real. Em 2021, a distribuição das vacinas, melhores tratamentos e o declínio de hospitalizações e mortes coincidiram com a introdução de “uma panóplia de medidas coercitivas e intrusivas”.

Restrições excepcionalíssimas aos não vacinados eram defensáveis. Mas em muitos lugares esses grupos minoritários foram demonizados, até por seus governantes. O presidente francês, Emmanuel Macron, disse que tornaria a vida dos não vacinados a mais dura possível e muitos políticos propuseram excluí-los das redes de seguridade.

A pandemia foi o laboratório perfeito para as tiranias testarem seu aparato de repressão e propaganda. A referência a um único país no título do Índice é incomum, mas emblemática: O Desafio da China aumentou com o vírus – cuja origem, de um animal ou um laboratório, por sinal, o mundo não consegue investigar. No terceiro ano da pandemia, há milhões de chineses confinados em lockdowns pela política epidemiologicamente insana da “covid-0”.

Em três décadas a economia da China cresceu o triplo da dos EUA. Hoje ela é uma superpotência econômica a caminho do maior PIB global. A pandemia energizou a confiança do Partido Comunista, que acusa os ocidentais de a administrarem mal, sacrificando centenas de milhares de vidas, e a propagandeia como prova de superioridade sobre as democracias liberais caóticas e decadentes.

A América Latina foi a região que registrou o maior declínio de um ano para o outro na história do Índice. Cinco países caíram na classificação, entre eles o Chile, de democracia “plena” para “falha”, e Equador, México e Paraguai, de “falhos” para “híbridos”. A queda foi puxada pelo indicador “cultura política”. A insatisfação pública com a gestão da crise amplificou o ceticismo contra a democracia, assim como a tolerância com o autoritarismo.

O presidente Jair Bolsonaro é citado como exemplo dos populistas iliberais que promovem a deterioração democrática, entre outras coisas por ter exigido a renúncia de dois membros da Suprema Corte, questionado a integridade do processo eleitoral e ameaçado descumprir o resultado das urnas. O recrudescimento desses ataques em 2022 está contratado.

O vírus foi tóxico para a democracia global e tônico para a autocracia. Mas ele atingiu uma democracia já em degradação e uma autocracia em ascensão. A autocracia global, liderada pela China, não retrocederá num futuro próximo. A grande dúvida é se as democracias conseguirão sanar suas comorbidades e eliminar os patógenos que as consomem. O Brasil padece da mesmíssima enfermidade e paira sobre ele a mesma incerteza. Mas uma coisa é certa: o seu presidente, longe de ser parte da cura, é o agente mais virulento da doença.