Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Descaso

Com testagem precária contra a covid-19, Saúde ainda deixa apodrecer milhares de kits de teste

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

No dia 17 de setembro passado – 1 ano, 6 meses e quase 600 mil mortos depois do início da pandemia –, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, viajou até Natal (RN) para lançar o Plano Nacional de Expansão da Testagem para Covid-19. “O vírus é o nosso inimigo”, disse o ministro na cerimônia, “e nós estamos conseguindo vencê-lo testando a população.” A fala de Queiroga seria risível, não representasse tão bem o descaso e o escárnio que têm marcado a assim chamada “gestão” federal dessa emergência sanitária que tanto tem custado ao País.

Para adicionar insulto à injúria, no exato momento em que Queiroga anunciava seu extemporâneo plano de “expansão” do que, na prática, jamais existiu (testagem em massa), milhares de kits de testes para covid-19, dengue, zika e chikungunya, além de vacinas contra a gripe e a meningite e insumos laboratoriais como soros e diluentes, apodreciam nos galpões do Centro de Distribuição do Ministério da Saúde em Guarulhos (SP). A informação foi revelada pelo Estado, que teve acesso a documentos internos da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), vinculada à pasta.

O prejuízo de ordem material para os contribuintes é de R$ 80,4 milhões. Contudo, no contexto de uma tragédia sem precedentes, parece irrisório diante dos danos físicos e emocionais infligidos à população por tamanha incúria.

A experiência mostrou cabalmente que os países que melhor responderam à pandemia foram os que adotaram desde o início planos de testagem amplos e organizados, incluindo o mapeamento de pessoas que tiveram contato com indivíduos infectados, e apostaram na vacinação da população. O Brasil não esteve nem remotamente próximo das boas práticas adotadas por países como a Coreia do Sul e a Nova Zelândia. Ficou para trás até de vizinhos na América do Sul.

Mesmo os governantes responsáveis, que entenderam a dimensão da crise que teriam de administrar, praticamente navegaram às cegas, sem ter um mapa de disseminação viral fidedigno para nortear a adoção de políticas públicas de contenção ao vírus em decorrência da falta de uma coordenação nacional de ações de combate à pandemia. Como se sabe, vírus desconhecem fronteiras, sejam domésticas ou internacionais. A união de esforços é mandatória para lidar com a ameaça sorrateira.

O perecimento de insumos tão necessários é escandaloso porque se sabia da aproximação da data de vencimento e nada foi feito com essa informação. Um ofício da coordenadora-geral substituta de Logística de Insumos Estratégicos para a Saúde, Katiane Rodrigues Torres, ao qual o Estado teve acesso, registra que “houve comunicação prévia da proximidade de vencimento desses medicamentos” às autoridades competentes no Ministério da Saúde. A despeito do alerta, a servidora apontou “ausência de resposta das áreas responsáveis, em tempo hábil, para distribuição desses Insumos Estratégicos para Saúde (IES)”. O ofício de Katiane Torres foi redigido no dia 22 de setembro passado, cinco dias após Queiroga ter ido a Natal anunciar a “expansão do plano de testes para covid-19” do Ministério da Saúde.

O presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Carlos Lula, afirmou que “perder doses de algo que é plenamente controlável” é consequência da “falta de planejamento” do Ministério da Saúde. Até pouco tempo atrás, a pasta era chefiada por um intendente que era tido como um ás da gestão em logística. “Longe de ser um episódio isolado”, disse Carlos Lula, o descaso “reflete toda a conduta pública do governo federal há pelo menos dois anos”. Ou seja, mesmo antes de o mundo tomar conhecimento da existência do novo coronavírus, o Ministério da Saúde já faltava aos brasileiros ao negligenciar os cuidados com vacinas contra a gripe, pentavalente, tetravalente e BCG, além de soros e diluentes.

Esse é o enorme custo de punir profissionais sérios e entregar o Ministério da Saúde à gestão de neófitos, quando não incompetentes e criminosos. O trabalho de recolher os cacos e reconstruir não só a pasta, mas o País, será enorme.